(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Hermínia e Herculano

 Sr. Herculano e Dona Hermínia eram casados há mais de 40 anos. Nunca tiveram filhos. Conheceram-se em uma repartição pública do extinto estado da Guanabara. Ambos praticamente solteirões, pós idade núbil, aproximaram-se já maduros e formaram um consórcio familiar, à meia idade, sem ambição de prole ou rapapés. O tempo que lhes parecia ingrato e atrasado, foi-lhes uma dádiva: mais maduros, viveram o bom da parceria, viagens, vinhos, passeios à serra. Atravessaram épocas e tempestades em uma parceria sem arroubos, pura e simples, já sem o peso dos retardatários e das possibilidades perdidas. Nos primeiros anos e décadas, eram curiosamente invejados por casais mais consuetos, cujo peso das decisões de vida, peleias e filhos, já agouravam as juras do altar. Ao borde de tornarem-se octogenários, porém, Herculano padecia de reumatismo em suas pernas finas e compridas e Hermínia manifestava gradual esvaziamento de suas faculdades cognitivas. Afora do cenário doméstico, o mundo atravessava uma pandemia viral de inéditas proporções, e parecia desacolher os consortes. Sem filhos, netos, sobrinhos ou parentes que pudessem assisti-los, restava-lhes a vaga referência de uma irmão de Herculano, no interior de Pernambuco. Desassistidos mas autoindulgentes, Herculano e Hermínia ousavam-se nas ruas movimentadas de Copacabana, vestindo uma máscara às vezes abaixo do queixo, outras abaixo do nariz. Perceptivos da exiguidade e finitude iminente, tomados pelo mais tresloucado carpe diem, como crianças, negaram as premissas do "fique em casa", e puseram-se a sair mais e mais, sob qualquer pretexto. Mesmo percebendo a senilidade de Hermínia, Herculano punha-se a segui-la sem questionar, a tal ponto que tornaram-se frequentadores assíduos de botequins lotados do bairro. Bebiam até que beirasse o amanhã e como se amanhã não nos houvesse. Sem qualquer trato explícito, mas implicitamente comungando do inevitável, propuseram-se a uma eutanásia etílica - que os porteiros e o síndico inexitosamente tentavam dissuadir. Até que Herculano foi-se, internado, por supostos problemas de diabetes. Hermínia, sem o cúmplice e quase sem lucidez, restou sofrida, urrando angustiada na portaria e em circuladas pelo quarteirão: dizia-se traída pelo marido, fugido por um rabo de saia, depois de lhe aturar tantas décadas. Hermínia sofria, copiosamente - ainda que as reais razões já lhe escapassem ao domínio.

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