(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

Vinicius de Moraes


Poética

De manhã escureço

De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.


A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.


Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã

Ando onde há espaço:

— Meu tempo é quando.



Canção de ninar meu bem


Hoje a lua despiu seu véu 

E flutua a dormir no céu 
Na canção que de mim nasceu 
Meu amado adormeceu 
Meu amado adormeceu 
Dorme, meu amor 

Como no céu a lua 
Tu serás sempre meu 
E eu só tua 
Dorme, amigo, que a poesia 

É um mistério que não tem fim 
Dorme em calma 

Que assim, um dia 
Dormirás para sempre em mim 
Dormirás para sempre em mim



Poema dos olhos da amada


Ó minha amada 
Que olhos os teus 
São cais noturnos 
Cheios de adeus 
São docas mansas 
Trilhando luzes 
Que brilham longe 
Longe nos breus... 

Ó minha amada 
Que olhos os teus 
Quanto mistério 
Nos olhos teus 
Quantos saveiros 
Quantos navios 
Quantos naufrágios 
Nos olhos teus... 

Ó minha amada 
Que olhos os teus 
Se Deus houvera 
Fizera-os Deus 
Pois não os fizera 
Quem não soubera 
Que há muitas eras 
Nos olhos teus. 

Ah, minha amada 
De olhos ateus 
Cria a esperança 
Nos olhos meus 
De verem um dia 
O olhar mendigo 
Da poesia 
Nos olhos teus.


Amor

Vamos brincar, amor? vamos jogar peteca 
Vamos atrapalhar os outros, amor, vamos sair correndo 
Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação? 
Vamos sofrer, amor? males da alma, perigos 
Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo 
Vamos, amor? vamos tomar porre de absinto 
Vamos tomar porre de coisa bem esquisita, vamos 
Fingir que hoje é domingo, vamos ver 
O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão? 
Vamos, amor, tomar thé na Cavé com madame de Sevignée 
Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar 
Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N. S. do Parto? 
Vamos, amor? vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos 
Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol 
Vamos, amor? 
Porque excessivamente grave é a Vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário