(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

terça-feira, 24 de outubro de 2017

desconhecidas autoras da argumento

essas mulheres com nomes de velhas são gatas
escrevem poesia sinuosa, serpenteando meu sentido

acho tudo pretensiosamente
denso, lírico, moderno

escrevem como moças velhas
e na foto de contracapa vestem óculos d'avó
mas são absurdamente modernas em escrita despontuada, desapontada

remetem em papel polem
modernosas desformas do que não sentem
tratam da mesmíssima diferença

apenas firulam e parecem
uma voz rouca
quase mudo miado
do que não dizem

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Foz

os rios que em mim morrem
na quebrada de (m)águas profundas
em raso riso me afundam

além de qualquer fronteira
amém a qualquer besteira
o que atravessa, por fim
é vontade de começo

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Despacio, despacito

Quando criança, uma das maiores alegrias era comer risole engordurado do botequim onde meu pai tomava café, nos intervalos do escritório. Minha mãe ficava fula da vida, porque depois eu mal almoçava, alegremente saciado.

Fora dessa subversão do risole e algumas bicadas na caipirinha que ele me consentia na infância, meu pai, advogado e depois juiz, sempre foi de indefectível postura, propriamente um fiel da balança, aquela libra de Atena cega, a estátua de bronze que ornamentava sua mesa de trabalho.

Sempre gostei de brincar no escritório, mas o Direito, algo que parecia tão enfadonho, caiu-me como consequência natural de outros gostos, revelado em teste vocacional. Afinal gostava de ler, escrever, argumentar, apesar de tímido adolescente.

Com o Flamengo, tudo foi mais precoce. Nasci no ano do célebre mundial. Em minhas fotos mais remotas, vestia um gorro rubro-negro. Nasci quando Flamengo era mágica, Zico era super-herói. Passei a torcedor fanático só na adolescência, mas a identidade de torcedor flamenguista era irremediável herança, transcendente à paixão de cores, à influencia paterna, e até às vitórias épicas: cristalizou-se como essência, como destino inevitável.

Assim, nasci Flamengo e com meu pai, depois de um jejum de décadas, em 2009 vibramos o Hexa do Flamengo (sim, foram 6 e ninguém há de negar). No gol do título, de Ronaldo Angelim, ele ia e voltava à janela da área, acendendo e apagando intermináveis cigarros. Passava na sala, olhava, xingava, saía, ia a TV menor do quarto, depois à área, e outro cigarro.

Ele como eu, era ariano. Me refletia nos mesmos tiques de teimosia e impulsividade. Batemos muita cabeça.

Criança, virei uma TV, daquelas de madeira, no chão; tentei acertar sua bota de gesso com um paralelepípedo; sumi um dia todo e, em resposta ao seu desespero, respondi em rima "estava na casa do Léo, comendo bolo e pastel".

Eu era criança terrível. Mas como isso o divertia, como ele ria de tudo o que eu aprontava. Havia uma inegável cumplicidade nisso.

Cumplicidade também havia em entender meu pavor do colégio. Assim, antes de me deixar, abastecia o carro lentamente, pedia ao frentista para limpar o vidro com toda calma. Aquele adiamento da hora de entrada era proposital e confortante.

Com a separação, fomos nos perdendo mais de vista, a relação pai e filho entrou num patamar de compromissos, tudo ficou menos leve e mais retraído, até que nos reafinamos por um bom período, durante minha faculdade de Direito.

Depois, o peso dos concursos e das expectativas de resultado que me punha; os desencontros ideológicos e a frustração com meu partidarismo em favor da minha mãe.

O pai de agora foi se afastando. O pai da infância foi se reaproximando da imaginação.

Hoje, porém, foi decretado estado real de ausência, devidamente certificado e homologado, em todos os trâmites cabíveis.

O pai passa a personagem de lembranças, que me surgem desordenadas, desobedientes a qualquer senso de cronologia.

Lembro, sim, do gosto do risole de botequim. É a sensação mais concreta que me toma agora.

Pois o inconcreto me assola. Uma inexistência inefável, de perdões e possibilidades que não tiveram seu tempo. Tudo isso me assola sim, mas transcende: quando olho a mesma imagem de São Judas, diante da qual ele tanto pediu pela minha saúde quando nasci amarelão.

Subindo o olhar à cúpula da minha igreja preferida, repleta de vitrais simbólicos, busco uma alegoria que esclareça a perda, que desvende uma vida inteira.

Mas não há. Sobram dúvidas, com as quais rabisco essas linhas.

Diz-se que a vida é curta e rápida. Hoje não parece. Vejo-o em foto remota, de tempos tão enamorados de minha mãe, debaixo de frio mais árduo que o de hoje, posando ao lado da placa argentina "despacio".

Despacio, despacito: tudo lento vai e volta, se repetindo incansavelmente na memória.

A realidade da vida não é sorrisos de Instagram ou famílias perfeitas de comercial de margarina. A verdade está no oculto, nas falhas, nos desencontros, no que deveria ser e não foi.

À revelia dessa lucidez, porém, o velho álbum de retratos termina com uma perfeita foto, em que ele me olha bebê, cheio de ternura e orgulho. É digna de um prêmio.

Essa mais-que-perfeita foto das antigas, na verdade, parece registrar, instantaneamente, um momento em pleno e vivo vapor de acontecimento.

Prova disso: se arriscasse usar barba, o veria em mim, assustadoramente.

O tempo é tanto e pouco; a vida é curta e longa. O começo é despacio e passa ligeiro.

Enfim, depois do fim, o que fica é bom e a vida se renova.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

O dia fatigado ao sopro fino do inverno esvaído
trouxe-lhe respostas imediatamente óbvias sobre soluções cotidianas:
-quando nada acontecer no tempo esperado, aperte um botão
(abrirá, ao menos, o sinal de pedestres ou a porta do trem urbano)

dessa revelação, transborda uma questão cruel:
o que fazer dos problemas desautomatizados, quando não se vê onde apertar?

aperta-se o botão da camisa, como placebo?

ou o imaginário botão do peito, que faz cessar o doer?

ou o botão da rosa abrirá o poeta da cela do lirismo?

surrender



entre espaços insanos de mensagens eletrônicas
que tramitam na atmosfera poluída do centro da cidade
domita o silêncio plano
em pista livre ao incerto e não sabido
calo sobre o calo
e insisto nesse silêncio ínsito
como se lhe cobrasse alguma revelação indizível
numa sanha de arrancar da flor o fruto
ouço-me em hiato lacônico
bato-me em leves prolapsos
debato-me ao umbigo
implodo-me subliminarmente

terça-feira, 25 de julho de 2017

terrraço



uma alça na Bahia de Guanabara:
aquele ponto mais extremo, onde encosta a enseada de Botafogo e começo da Urca
do terraço do shopping olho algo esquecido na onda morta
alguma memória tamoia
alguma pindorama
ao meu lado muita gente na mesma inquieta contemplação
saberá alguém do tesouro esquecido no lodo?

Velha Galeria

O velho chafariz da remota galeria do Largo do Machado avisa aos passantes:
"Proibido sentar na borda do aquário"

No curto confinamento circulam duas carpas solitárias
que ignoram a britadeira da esquina
e as crianças ao colégio

sequer se sabem carpas
ou se imaginam peixes fora d'água

sexta-feira, 21 de julho de 2017

formosamente

tanta coisa nenhuma a dizer

a forma do conteúdo
é um conteúdo sem forma
continente sem linha
espaço absurdo

o conteúdo contém o continente?
a forma ata a ação?

quarta-feira, 19 de julho de 2017

nu age

o que sou
é tanto pedra
pouco rio
mato onde escondo
como fera
de olhos gritando escandaloso silêncio
desde a paleolítica era glacial

hoje marcou zero grau
no relógio da Central
do Brasil

quinta-feira, 6 de julho de 2017

adelante

o que nasceu fuga
viveu esquecimento
e morreu encontro

sexta-feira, 23 de junho de 2017

nas ondas que irradiam

debaixo da noite
na antena do coche
paira um música doce de um tempo longe

amores de novela que tanto se amaram
hoje eternecem lembranças pálidas

o som que os toca
os entoca profunda e insensatamente

segunda-feira, 19 de junho de 2017

há, resta - aresta

há, resta
alguma aresta
quina esta
res que resta
aquém de quista

quarta-feira, 7 de junho de 2017

armário projetado

a matemática inexata não soma
o vão entre o armário projetado
e o rodapé
na conta subtraída dos dias
não atua cupom promocional
nem clube de fidelidade
fidedignidade à coisa alguma

terça-feira, 6 de junho de 2017

sem título

Sou coxinha de jaca doce, perdoai

Exposição Poesia Agora

Enorme alegria por participar da exposição "Poesia Agora", que estará na Caixa Cultural, no Centro do Rio, de 10 de junho a 6 de agosto!
"Com curadoria de Lucas Viriato, criador do jornal de literatura Plástico Bolha, a exposição traz uma coletânea do trabalho de mais de 500 poetas brasileiros e estrangeiros, entre textos, livros, vídeos, fotos, registros sonoros e saraus."



sexta-feira, 2 de junho de 2017

entretanto

não fosse a melhor hora
entre tanto se
os silêncios me dariam

enquanto não atempo
encorajo a dura incerteza

então, grito
há, ora
o meu átimo de dizer


terça-feira, 9 de maio de 2017

im(per)man(ente)

anoiteço o silêncio
hoje
apalavrado
com o poema de amanhã

domingo, 7 de maio de 2017

pitaya

o amor da estação
escapa breve
com gosto
de sabão

quarta-feira, 3 de maio de 2017

5,44

a lei da oferta não nega
o preço que se põe
é o preço que se paga

segunda-feira, 1 de maio de 2017

a musa que te queria

a musa que seria
à luz dessa poesia
ao maior empoderamento se renderia:

seria rima assim
banal e despretensiosa
agudo raio em dia nuage

qualquer coisa alguma linda

tão potencialmente boa
que sem saber
à toa
deixaria dançar essa dança

terça-feira, 18 de abril de 2017

anacoluto



as fugidias palavras
na hora inefável
escapam
de dizer o que sinto

terça-feira, 21 de março de 2017

in_quieto

meias respostas não me falam
o calo do meu silencio não me amola
o desconforto é meu alento
há, lento, um tempo que me afaga

terça-feira, 14 de março de 2017

oito de espadas




na cela desse pensamento
definha o que te sonhava
doce cárcere nos seria
se bejássemos a liberdade

sexta-feira, 10 de março de 2017

poesia, não

poesia não é
sentido disfarçado
ou escárnio adulado

poesia adentra aqui à lua boa
sem seresta, pela fresta
raia ocasional o fim do dia

terça-feira, 7 de março de 2017

desordeiro

todas as retas me deixariam em casa em tempo recorde
sem estrada, retenção ou engarrafamento

o curto espaço-tempo trabalho-casa é o belo trunfo que ostento à essa altura

mas no fundo o desrumo é mais acolhedor

a curva mais longa
que não conduz a ponto algum
é o caminho mais saboroso ao final do dia

em descaminho, espio sorrateiramente o saldo do dia:

a criança voltando da escola
a velhinha namorando a xepa
o torcedores no futebol de botequim
a cara cansada da moça que trabalhou o dia todo e borrou a maquiagem
o motorista apressado ao ponto final

todas as coisas de uma terça-feira no fluxo ordinário de dia-após-dia
sem nada excepcional
repleto de mínimos detalhes incrivelmente desimportantes

sexta-feira, 3 de março de 2017

waters of march

as implacáveis águas de março
arrastam as cinzas da última quimera

até os pensamentos sobre o último poema capitulam à enxurrada

trovões berram: é março, é martes, é guerra!

as trombetas do dilúvio preludiam a revolução do sol:

saciada a sede da terra
despontam folhas e flores perfumadas com aroma da chuva

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

todotempo

antes havia você
desde os primórdios havia você
depois de tanta coisa ainda há
e haverá

amanhã e depois

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

vapor de ausência

habita entre o calor e a chuva
uma força etérea

o vapor de ausência

herança de dias perdidos
prelúdio do trovão à espreita

a ausência é justamente o presente
interim entre mim, o que fui e o que virá

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

lâminas sobre Ela

sacou o afeto
como faca
e em tom de ameaça
roçou-lhe o pescoço

ninguém se apavorou

era afeto que não afeta
lâmina de corte cego

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

vacío

el vacío
es lleno
de graza

siga la vaca

Barrio, Xul Solar

depués de una botella de malbec
sigo la vaca sagrada, apoio o veganismo

mas não me tire um bifinho de chorizo

as menores concessões
são maiores liberdades
em qualquer hogar do mundo
nos devaneios mais vagabundos

sob una botella argentina
voces portuñolas me hablan
algún sentido interliguístico
ya no me importa el idioma
quisá esté borracho y así me sienta argentino

como si fuera uno cualquiera
como si estubiera en una bodega
y mis dramas fueran argentinos

é tão bom despaisar os dramas
pensar como de fora
alguién adentro

hay argentino en mí
en mi psicología, filmes de Darín, vino rojo y carne

quisá haya alguno brasileño lejos de mí
un tío carioca, que samba a menudo
a quien no le gusta la playa todos los dias
y cuyas paisajes le sean distantes

soy un tío carioca a menudo
y quisá siempre fuera argentino
una cosa distinta de mi
que tal vez ni conozca

a menudo soy cualquiera
un tipo apatrida que no habla lengua alguna
y
en los sitios más improbables sea regional

no lo sé
no sé que lengua hablo
y cómo escribo mi poesia

tal vez escriba lo más grande poema de mi historia
en un país vecino
después de una sencilla botella de vino

rojo

domingo, 1 de janeiro de 2017

l'avenir


a implacável euforia
                 dos fogos artificiais
eriça cachorros loucos
mas
                         não obriga o manso pouso
                         no meu ombro
                         da pluma extraordinária
                         que esperei um ano inteiro