Sr. Herculano e Dona Hermínia eram casados há mais de 40 anos. Nunca tiveram filhos. Conheceram-se em uma repartição pública do extinto estado da Guanabara. Ambos praticamente solteirões, pós idade núbil, aproximaram-se já maduros e formaram um consórcio familiar, à meia idade, sem ambição de prole ou rapapés. O tempo que lhes parecia ingrato e atrasado, foi-lhes uma dádiva: mais maduros, viveram o bom da parceria, viagens, vinhos, passeios à serra. Atravessaram épocas e tempestades em uma parceria sem arroubos, pura e simples, já sem o peso dos retardatários e das possibilidades perdidas. Nos primeiros anos e décadas, eram curiosamente invejados por casais mais consuetos, cujo peso das decisões de vida, peleias e filhos, já agouravam as juras do altar. Ao borde de tornarem-se octogenários, porém, Herculano padecia de reumatismo em suas pernas finas e compridas e Hermínia manifestava gradual esvaziamento de suas faculdades cognitivas. Afora do cenário doméstico, o mundo atravessava uma pandemia viral de inéditas proporções, e parecia desacolher os consortes. Sem filhos, netos, sobrinhos ou parentes que pudessem assisti-los, restava-lhes a vaga referência de uma irmão de Herculano, no interior de Pernambuco. Desassistidos mas autoindulgentes, Herculano e Hermínia ousavam-se nas ruas movimentadas de Copacabana, vestindo uma máscara às vezes abaixo do queixo, outras abaixo do nariz. Perceptivos da exiguidade e finitude iminente, tomados pelo mais tresloucado carpe diem, como crianças, negaram as premissas do "fique em casa", e puseram-se a sair mais e mais, sob qualquer pretexto. Mesmo percebendo a senilidade de Hermínia, Herculano punha-se a segui-la sem questionar, a tal ponto que tornaram-se frequentadores assíduos de botequins lotados do bairro. Bebiam até que beirasse o amanhã e como se amanhã não nos houvesse. Sem qualquer trato explícito, mas implicitamente comungando do inevitável, propuseram-se a uma eutanásia etílica - que os porteiros e o síndico inexitosamente tentavam dissuadir. Até que Herculano foi-se, internado, por supostos problemas de diabetes. Hermínia, sem o cúmplice e quase sem lucidez, restou sofrida, urrando angustiada na portaria e em circuladas pelo quarteirão: dizia-se traída pelo marido, fugido por um rabo de saia, depois de lhe aturar tantas décadas. Hermínia sofria, copiosamente - ainda que as reais razões já lhe escapassem ao domínio.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021
tramitação
a poesia nunca me bateu na porta
jamais mandou carta ou telegrama
foi só uma aventura torta
não mexi com ela pretensiosamente sendo poeta
não importava que titulação viesse
queria dizer apenas
como me convinha
e, nessa toada, não me vejo em saraus ou antologias
não presumo que eu ou meu dizer sejamos classificáveis
nos moldes da norma culta
na tradição da poesia brasileira
modernosa escrevendo desarranjadamente minusculosa
aos músculos
com figuras escatológicas
o que tenho a dizer não cabe no cesto ou em gôndola
é palavra desprecificada, sem apreço no mercado
talvez me valha - e mais alguém - n´algum fim poente
tardiamente, como arrebol de imagens
recapitulação
Uma tarde à toa e um passeio no arquivo deste Blog - já tão démodé no formato - trazem vivências de épocas. Embora sempre fosse aqui espaço para rascunho e não arte final, para iter e não consumação, é interessante reolhar textos antigos, não com intenção de garimpo, mas com generosa percepção do momento da escrita. Que circunstâncias corriam ali, no ato da digitação, da escolha e falta de palavras? Que experiência arrebatava a escrita e que sentimentos eram dilatados ou forjados ao desenvolver as linhas? Alguns desses textos, hoje, melhorariam à reescrita; outros seriam mortos por ela, soterrados pela preocupação estilista. Em verdade, importa menos o que foi dito, não a forma de dizer. Há milhões de sinônimos e figuras de linguagem, para dizer com ênfase, disfarce ou estilo tanta coisa; mas o sentimento é uno, cru, desinteressado por bulas. O sentimento é só, puro, despretensioso, aceita papel de pão ou pólen. Exatamente por isso inexista hierarquia entre o poema publicado e aquele que restou esquecido por aqui. Aliás, os supostamente desimportantes são o que melhor sofrem ação do tempo, apuram-se e fermentam. Olhando pra eles, alcanço muito mais do que pretendiam dizer. Diga-se "sentido implícito" ou outro nome que se dê. Os poemas renegados tem um charme e carregam um vaticínio, como mensagem em garrafa lançada ao mar: depois de muitos anos, as estrofes desarranjadas, palavras inadequadas e cacofonias se orquestram.
as paredes me confessam
Quando criança, descobrira alguns segredos indescritíveis. Um deles, em especial, era ascultar uma casa vazia. Quando todos saíam, restava um zunido silencioso, em frequência baixa, às vezes disfarçado pelo ruído da geladeira, da tomada ou do stand by da TV. Com muita observação, era possível perceber a autonomia do zunido, cuja existência só era possível mediante ausência dos habitantes ou, pelo menos, a presença dolosamente desapercebida de algum deles. O tal zunido, uma vez notado, não se atinha aos ouvidos: elevava-se à experiência sensorial, a tentativa de comunicação velada, cuja origem e interlocutores eram indefinidos. Talvez falassem os livros, os quadros, as plantas, os vasos; talvez falasse a própria casa, seu organismo concreto, paredes, tubos e dutos. Parecia pouco importar o que se dizia; maior era atenção à possível oitiva - hoje lembrada e repetida, durante o sorver cuidadoso do café da tarde. Repetindo a observação quase esquecida, o ora homem pensou-se mais hábil que outrora garoto. Ledo engano: o fenômeno permanecia indecifravelmente o mesmo. O zunido zunia como se nada houvesse mudado.