(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

o rei roeu o panta rei

quando volto às nascentes
bebo a mesma água
sob outros reflexos
destes tempos correntes

panta rei?
pois não sei
se passou 
ou segue

o que imaginei passar, vai hirto à próxima curva da memória

o que imaginei ficar, está desfeito pela névoa da cerração
feito açúcar ao relento 
embebido do orvalho da montanha 

-desta montanha onde guardo meus segredos
este baú de lembranças vagas
que voltas e meias viajo e me revejo tanto

sim, às nascentes, estou às voltas
águas que me irrigam o canto
nesta altitude onde gravita meu irremediável quebranto

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

dizem os avisos

mantenha distância
- a mesma que já mantinha dos mendigos pela rua -
agora imagine tantos outros
e outros quantos a que se deve manter longe

o vírus não ditou a velha tendência urbana
(a impessoalidade é coisa nossa)

keep going
sem approach
mascarade
without face
sem cheek to cheek
so far away

mantenha distância
com alguma esperança
vai passar, passarim

ou pelo menos você passa
bem rápido
ao largo

veja tudo do lado oposto da calçada

não abrace, não beije, não ame
use AME para pagar 
pois amor sem amor não se paga

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

horológio

nunca serei anjo
o escuro é absurdo

às seis horas de todo dia
os alto-falantes da Nossa Senhora da Conceição do Paquequer cantam Ave Maria 

a rotina insignifica o homem

tropeço o próximo passo
à margem do futuro que não somos
armados à despedida 
premeditada

sopratutto

ao contrafluxo de mim mesmo
e ela também a esmo

conexão erradia
ao sol de um dia
amanhã que não haveria
eternidade ao sol se poria

terça-feira, 15 de setembro de 2020

sô sorry

sinto muito
por não saber dizer
o que muito sinto 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

o que não couber na memória, que fique pelo caminho

a festa ao lado tem a cara de ontem
velhos sucessos ora comedidos

e Cartola, sem hora, lá 
bem fundo

ao buscar cerveja, o convidado comenta o refrão:

"sensibilidade não tem a ver com poder aquisitivo; adquire-se sem poder
na desatenção, surge a palavra ve-ne-rá-vel
-de alcance comum-
porém, somente conduzida ao altar pelas mãos do artista"

terça-feira, 2 de junho de 2020

têmporal

tempo é só uma questão
de tempo

é só 
uma questão 
que

se sigo lento
e atendo
por um adendo
advento o contratempo

ou se atempo o alento
pouco tento me haverá 

segunda-feira, 1 de junho de 2020

manche, desmanche, dimanche - quijote de la mancha

o sisal natural estirado sob o couro incorreto - aquele tapete era sim uma agradável consonância estética
ton-sur-ton de palha a marrom

um acidentado dia, porém, o tinto descabido quis entrar na história 

fez-se mancha, gritante, sanguínea, sem contexto algum

o tapete então recebeu um arsenal de produtos de limpeza e a naturalidade da fibra foi, literalmente, alvejada: o pardo burro fugiu ao cáqui esbranquiçado

ora, se a mancha e asseio desarmonizam, o que fazer?

o alvo tornou-se laboratório do manchar e desmanchar:
do vinagre de maçã ao matchá, em um colorir/descolorir incansável
chiaroscuro saboreado por dias

a provocação desse litígio de cores, enfim, findou-se:
o fugidio tom do burro foi surpreendentemente revelado!

quinta-feira, 26 de março de 2020

quarentema

Lembro da minha ingenuidade e sinto saudade, mesmo sem tê-la perdido.

segunda-feira, 23 de março de 2020

quarentena in quaresma

o que paira sobre nós
é o que pára sub o título:
"a parada pré-parada"

pois urdia o urgente
desarmar-se tão de repente
a fazer da natureza passadiça
o inesperado tempo presente

assim,
te toca
entoca
o intocado
em ti

aquieta o suspiro
faze imperceptível silêncio 
deixa refazerem as ondas
e Copacabana a areia branca

até enfim o lumiar do mundo novo
à tua espera irá cantar


quarta-feira, 11 de março de 2020

farinha láctea

quando criança, sempre olhava o céu e apontava estrelas, aceitando a lenda de ganhar verrugas

passaram-se tantos anos e sinto que as estrelas seguem as mesmas, como se vivessem um tempo acima do tempo
e nossas décadas lhe fossem segundos

entre o menino e o homem a mesma estrela hirta, confinante do incerto

estará perto ou longe? será brilho novo ou luz enfraquecida? quantos meninos viu tornarem-se homens? quantos lhe apontaram e já viraram pó?

stardust: elas também se findam suave, embora muito, mas, muito mais lentamente, saboreando a delícia do implacável apagar

abro as janelas, pálido de espanto
espio todos os andares vizinhos
quase todos, excetos os insones, dormem

hoje é dia de lua máxima cheia
toda nua, inunda a rua
e nem lhe dou bola

quero-te estrela
dos meus apontamentos de ontem e agora

como antes vivia o céu
curtindo a aragem fria e leve da serra
hoje revivo tudo isso
silenciado sob um cálice de tinto

e quase parnasianando
sei que as amo para entendê-las:
lembrei até que o céu nos havia

perdoai por todo o tempo desalongando o pescoço
sem fazer notar minha miúda significância 
curiosamente tamanha à tua grandeza, que chega aqui em um rastro singelo, quase sussurante

que será do teu tempo, estrela? 
viveste, olhaste, choraste, enfraqueceste tua luz? 

alumia como sempre e sou eu, ora, míope?

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

temporada

se a espera parece longa
a grande ironia é:
nada pode retardar a ação do tempo

os cronômetros correm em eterna disparada

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

à to(l)a

o amor à toa, tão tola
dir-te-ia
o que voa não pia

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

corretor ortográfico

entre o preterido
e o preferido
a distância é uma mera letra 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

a arte da guerra

luto contra o luto 
o minuto dissoluto
e o gogó diminuto

ante a vida em estado bruto 
e sem usufruto
nos debatendo em ondas

luto como alguém que já lutou
e não domou qualquer estatuto
tampouco fez-se arguto

(ora vê com nitidez mais míope 
o verão do Rio pelo insufilm)

luto
hirsuto
em preto
sob óculos escuro
ao salvo conduto

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

casa 4

a inédita hora remediava o passado segundo
mais um daqueles trânsitos de planetas sucessivos!

debaixo da misteriosa constelação
aguardamos o precioso tempo onde morar

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

sinédoque


gosto de atravessar contigo
fronteiras imaginárias
até que o rio corte a montanha
e o mesmo chão
ganhe estrangeiro dono

onde as coisas mais recentes careçam nome

arre, medo

não cabe nesta moldura
o amor é soltura 
só tua

sem calçada, meio-fio, à beira da rua
livro lido e não falado 

aos sete ventos
nem o espirro
pois o que não assovio é resfriado