Ela foi a avó que permitia o impossível, nos presentes mais caros: Castelo de Grayskul, bicicleta, computador; nos passeios ao Rio Sul, Mesbla, Sears. Na adolescência, minha maior alegria era que passasse uns dias em Teresópolis e comentasse dos vizinhos, parentes e, me fizesse rir tanto quando lhe perguntava se algum quitute estava bom e ela respondia na lógica negativa: "não está ruim não". Por tantas coisas, era muito difícil conviver com ela: se foi avó divertida, seus sobressaltos assustavam os filhos. E carregava dentro de si a centelha da insatisfação humana, que com o tempo, foi se agravando; mas sua personalidade resiliente a tornava imune à ação do tempo. Sempre com boas feições, nunca padeceu de doença grave; viveu saudável até o fim, embora sempre clamasse pelos créditos de seu filme. Desde os setenta e poucos já resmungava "já tô fazendo biscoito, não quero ficar enchendo vocês muito tempo não". Mas o tempo lhe concedia mais e mais, ironizando suas súplicas.
Só nos últimos três anos percebi que ela foi se exaurindo vagarosamente, nas idéias, nas certezas. Restava uma teimosia cíclica e repetitiva, com a qual a discussão era inócua. Nos últimos meses, senti minha avó se esvaindo.
Ontem ela partiu e me caiu a ficha que àquela personalidade forte não foi concedido o dom da imortalidade.
A parti daí me doeu, senti a perda, já calculada, mas ainda não sabida.
Ocorreram tantas fotos, falas, imagens, possibilidades.
Nunca houve graça no Natal sem ela; as reuniões de família tinham outro teor.
Tudo isso fica latejando em mim, num desarranjo, numa absoluta incapacidade de transmutação.
Não sei se posso resumi-la a lembranças, porque o improviso de suas tiradas eram a maior arte.
(...)
Enquanto isso, um grande amigo meu teve uma filha. A vida aponta novos atores.
(...)
Uma foto nossa desponta no porta retrato digital: eu, vó e minha afilhada, ainda bebê.
As gerações se sucedem, mas nada se substitui.
O doce de laranja-da-terra é improrrogável.
A morte não transforma, esfacela.
Mas após o fim, saudade me resta, saudosa:
-Saudosa Miloca!