(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

destello

no limiar 
entre a liminar
e o lumiar
sem eira nem beira
destela a telha

o começo logo finda
a rima reconvinda

ao devir indago
atento ao pressago
se devo ir 
ao caminho de Santiago 
fluir ao vago
a falta d'afago

sol e chuva

na tarde ensolarada
chove curiosamente

precipitam sóis ao pensamento
vaporizam lágrimas ao livramento 

tais as cousas sem serventia no camelô,
o aprazível é aprazado
o tempo foge a nos deixar 

mas que se passa?
não é nada!
ou é:
a própria vida.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

entre o divã e a diva (homenagem a Klein e Mago Poeta)

da maternidade
transfere-se
o deslumbramento 
à psicanálise 

e o problema além 
a consulta aquém 
na semana que vem
o date com porém

cabe à diva, ao divino ou ao divã?

tempranillo

o vinho dos mares d'Espanha
reflete sobre sonho e sono
e sincronicidades que tardam mas não falham

também sobre a vida que amanhece
bem cedinho, tempranillo

a qual é preciso estar atento
para raiar-se
e acordar-se

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

A Manel de Barros

já se fincou pedra?
já se fluiu rio?
já se alumiou sol?
já se avoou ave?

as coisas não queriam ser vistas por pessoas razoáveis 
hoje, pior:
já não mais suportam
que lhes falte entrega

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

ex-ofício

do caos decorrente ou inconsequente
projeto bem pensado ou mero jogar de dados

cabe ao poeta inciente 
acolher o oculto 
que angustiadamente esconde
nossa centelha existencial,
nosso ouro

terça-feira, 25 de outubro de 2022

caminhão de mudanças

quando vejo o caminhão de mudanças
com letreiro enorme
parado à porta do meu prédio
me pergunto se não é ameça explícita
à ilusão de rotina tediosa

wabi-sabi

à sombra incerta
ao próprio desencontro
restando no lugar do qual já foi embora
um homem que dorme
vendo seu próprio filme

por ali
em dias molhados
o rio corta pedras como seta incontível
nada queda hirto
tudo corre abismo
mar incerto a desencontrar

o vasto só a si se basta
e o pensamento pasta 
nas incontáveis colinas
contando vaquinhas e plantações 
balanceando anos idos 
e poemas eternamente inacabados

sim, foi tudo de repente
o inda outrora premente
virou semente 

não:
tanto segue o mesmo
retorno sem consolo

e naquela água enlameada melhor espelha a imprópria imagem
-sem reflexo-
pois adentro de si 
correm 
todos aqueles rios turvos

soltanto parole

as palavras nada dizem
apenas orbitam
o indizível
- pretensiosas que são 

domingo, 16 de outubro de 2022

todas as tantas coisas

O perto e o longe são parte de mim. Este silêncio esquecido e o burburinho da cidade - igualmente me cabem. Encontro-me perdendo-me no mais remoto desvario. Estou na constelação e no brilho da estrela cansada que aqui me alcança.

Desde os miúdos acontecimentos, tudo conflui para este meu celebre momento: ser profundamente vencido por algo maior, fluir debatido até ganhar-me.

perto-longe

Mesmo aqui, no ponto esquecido do mapa, ermo e esmo, panta rei: a vida seguiu seu curso. O rio corre, ainda que o falsete de pedras lhe esconda as águas. 

"Dez anos é muito tempo", haveria de pensar.

Alguns foram, outros se foram. Mas há no espaço-tempo uma linha curta, que encurta a história em um nó: retorno terno. Uma curva que volta à mesma praça que não muda: o cachorro dorme e a criança corre sem compromisso com o futuro nacional. Todo dia é domingo.

O rio segue regendo tudo que ocorre: seja no que se arrasta e não permanece; seja no poluto batismo da cidade, que teima em ser esquecida, fazer-se esquecida, brincar com esquecimento, abrigando lugares que desafiam o coração: "Soledade 1, 2 e 3", ruas sem sem números, estradas de chão a lugar algum, pontos em que ônibus param sem pousar.

Sob este mesmo sol, pelos prismas de um diamante, o olho vê nativo, cativo, forasteiro e retirante.

Já voltaste, depois de muito tempo, ao mesmo lugar? Vence a sensação de visitar a si mesmo, recapitulando instantaneamente todos os pensamentos, angústias e prioridades da última vez, quando circulava-se a praça para aquietar-se. A aporia cambiou, mas aquela inquietação ainda merece ser acolhida. 

Aquele que revisita a cidade reencontra mais de si mesmo: não se sabe se aquelas águas turvas são fluviais ou suas. 

Tudo segue meio feio e enlameado, e, ao tempo mesmo, tão poético e vulnerável.

O findar dos ciclos, por mais doloroso que seja, sempre nos fortalece. Mas os ciclos findos também nos acolhem.

sábado, 1 de outubro de 2022

contravias

incomoda
o trânsito
com buzinas
sirenes

porém, o maior barulho é inaudito:
"tudo transitório em demasia"

tanto que o verbo
de transitação cansada
ora intransitivo e intransitável
caminha silente ao ascostado

domingo, 18 de setembro de 2022

ressignificado

o que invalida a vida é o esquecimento
jamais a morte

a chama é prelúdio da cinza
que é cor concreta
ornamento contemporâneo e industrial 
ao apartamento novo

com varanda
à beira do abismo
-de precipitado precipício-
pois há o sol da manhã
que bate do leste a oeste
ou este:
o soul é arrebol
eterno

como saudade é terna, eterna

ponho remotamente
a trabalhar
ausências 
neste tempo tão presente
de passado e futuro concorrente 

em gole retinto 
sorvo o mesmo tinto
nada a sufocar
pois espaço cabe imenso
o respirar:

pulmões a plenos ares 
avarandados
enorme ressignificados
vida ávida a prosseguir

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

pensamento alado

saio de mim 
como serafim atordoado
o quanto vôo 
e vou
ao fim, assim
abismado

sábado, 27 de agosto de 2022

timidez das mãos

o frio resolve a timidez
das mãos
pois se acolhem
nos bolsos

sábado, 13 de agosto de 2022

A lua mais linda que já ouvi

A lua era realmente absurda. Mais linda, redonda e amarela que já vi. Em noite limpa e plena, via-se o contorno da serra com perfeição e, ao fundo, a Guanabara acesa. À meia altura, boiava ela, em pouso sem gravidade, milhas além, mas, também, tão perto. Alumiava como nunca, com todas as forças, a ponto de parecer um sol - embora cheia como essa jamais ambicionasse ser coisa outra. Diante do deslumbre absurdo, os expectadores, no coletivo, em direção àquele farol-satélite, experimentavam a vacuidade de adjetivos: calavam-se, diminutos. Quando então irrompe o grito de um mudo, da poltrona à frente. Embora sem fala, parecia ser o único a saber o que dizer. Gritava, balbuciava expressões ininteligíveis, pulando de lado a outro, tentando fotografar a lua. Sim, era a lua mais linda que já vi,  capaz de fazer o mudo contar, com precisão, o indizível. 

tanta coisa não se sabe dizer

confesso
este delito
tanto por dito
ou não 
a tal ponto que
 
interdito 
e oiço
o silêncio inaudito
em sussurro mal dito
a me dizer


quinta-feira, 28 de julho de 2022

rua dos inválidos

os nobres casarões da rua dos inválidos
mesmo carcomidos, em ruínas
continuam
com eiras, beiras e sacadas
a debruçar eternidade

a validação não tem prazo de vaidade
sequer valida, em verdade;
é, apenas, uma valia 
tão só 
à raridade

alinearidade

nada é linear:
linha de pipa avoada
às profundezas do céu

to the moon
or to the hell

a depender nossa vã filosofia
ciscando o dia-a-dia

a vida é isso: 
não a fantasia intangível 
mas a lida possível

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Kairós

as perdas são pontos da mudança geral
virada de chave
aos ciclos primordiais da Natureza 

extrair boa sensação desse contexto
é aceitar a integralidade da vida;
o agora é relativo, fugaz e permeado de lembranças

nem tudo se perde 
quando se percebe 
que o presente é parte de um sistema maior de tempos e acontecimentos

quinta-feira, 14 de julho de 2022

sub-re(ce)ptícios

todos explícitos
implicitamente
guardam-se
embora
deixam-se
com tudo
vistos

sexta-feira, 8 de julho de 2022

e-vadi(d)o

achado não é roubado

roubar a vida própria
dá à luz
quem essencialmente é

só o evadido 
vale a viver
vive a valer

e ganha a si mesmo 

quinta-feira, 7 de julho de 2022

o rústico não envelhece

a reflexão quase ficou no banho:
"o rústico não envelhece"

o segredo ao aging é não ser anti
o oldfashioned venceu a ânsia 

tais os acolhedores móveis de madeira que abraçam, ornamentam, enredam histórias
alheios à liquidez das tendências

criado-mudo, cadeira de canto, cômoda de madeira de lei:
sobre eles eloquente 
assenta-se e assente-se
algum sentido perene

quarta-feira, 6 de julho de 2022

flâneur de temps en temps

o maior flâneur é aquele que espana a poeira do tempo
caminha vielas esquecidas
atravessa avenidas movimentadas de lembranças
pareia pés e pegadas

faz paralelos e paralelismos com paralelepípedos

o maior flâneur olha não apenas o factível do então e agora
vê todas as camadas, sobrecamadas, superfícies e coberturas
chapisco, emboço e reboco 
musgos e heras 
às mais sutis rugas e rachaduras
por onde se tramam histórias 

sabe que as casas superam os homens
mas o concreto está aquém da vida


terça-feira, 5 de julho de 2022

avermelhado céu

esse sentido do que sente
e não cessa
(não esvai como aquela nuvem)

é reticente e re-sentido

não se cabe nem é contido 
então resta assentindo

há sentido:

au après midi
à meia hora, há meia tarde
avermelhado céu te faz plangido

segunda-feira, 13 de junho de 2022

vende-se

A luz esquecida acesa, na última visita do corretor, revelava paredes adormecidas do apartamento que já foi casa. As velhas cortinas brancas de tecido fino, a porta de madeira trabalhada, o adesivo de marca no vidro da janela, a pintura em tom goiaba desbotado, o armário embutido branco amarelado, a decrépita cúpula no teto eram vestígios de remotos habitantes. Aqueles cem metros quadrados já abrigaram o começo de casal e o berço do bebê; alguns natais e presentes na árvore; brigas da esposa e ameaças de separação; filhos crescidos ao mundo em intercâmbio; pais solitários e síndrome do ninho vazio; pais separados à velha mãe solitária, agravando seus grisalhos, ao brilho da telenovela. Passou-se ali uma vida inteira, do sol de cada manhã à aragem da noite, tantos personagens, amores, brigas, sonhos. Tudo até então adormecido ao mundo, desde a última partida, até que o corretor esquecesse a luz acesa na última visita e restaurasse um universo perdido no tempo. O cliente, em seu olhar prático, havia repelido de plano a negociação, face a necessária reforma do banheiro azulejado, restauro de mármores e sinteco desfeito, e demãos mais claras. Ao fracasso das argumentações do anunciante, velado à luz amarela - esquecida acessa - seguiriam reinantes os objetos inanimados daquele cenário repleto de registros de afetos e desafetos, com evidências tão desimportantes aos possíveis compradores. O ex-lar, então imóvel, quadrissima, era precificado ao melhor custo de herdeiros cansados, após meses de inexitosos anúncios, os quais relegavam aquelas riquezas banais e secretas de cotidianos perdidos ao curioso olhar vizinho.

sábado, 4 de junho de 2022

ride like the wind

não mira a falta

pois a sentida abundância

é mais presente


elabora teus mares

jamais deserta


sem vento

faz sopro à tua vela


keep going

a cela é sela

el barco sobre la mar

y el caballo en la montaña

lugar de fala

o lugar é de fal...ácia
pois a palavra descabe 
a quem cala e sente

o que ressente 
no recinto
silente

blockchain

mosquitos e bitcoins
aragem volátil pela janela
a bater no rosto, a beliscar o corpo
a percorrer o sangue
atiçando a cobiça do vampiro inseto


domingo, 29 de maio de 2022

me dita a ação

m'aponto e eis só um ponto
nada além de paisagem
o assombro em estiagem
a suavidade em não dizer

insciente e incidente:
de tudo que vejo sou componente
contemplo o templo que sou 
e toda resposta a me beijar silente 



quarta-feira, 25 de maio de 2022

Paródia de "Divido o que conheço", Fernando Pessoa

Duvido o que esqueço
De um lado não é o que sou
Do outro, quanto conheço
Por entre os dois restou

Nem sou quem me lembro
Nem sou quem há em mim
Se penso em dezembro
Se creio, não há fim

Que melhor que isto tudo
É ouvir, na passagem
Aquele ar certo e mudo
Que eternece a estiagem

terça-feira, 3 de maio de 2022

atavismo

lido com a mesma lida
e sonho os mesmos sonhos 

porto o mesmo olhar
de contemplar e deslumbre
dos meus 
que não tiveram este tempo 

protejo seus projetos 
guardo suas (in)certezas 
alinho o horizonte à imaginação
dessas asas que voaram tanto

continuo do ponto da estrada onde restou
e sigo mais, ademais
de tudo que passou

quinta-feira, 28 de abril de 2022

mixidão

o tempo presente
é fome matada
com sobra de geladeira
do século passado

quarta-feira, 20 de abril de 2022

o bem do mar

nessa realidade oceânica
ilhas, arquipélagos e até continentes de bons atracamentos

porém,
jamais esquecer:
somos seres do mar
(mesmo que fundeados por anos e anos)

marinheiros, pescadores, navegantes, remadores
sempre velados à imensidão

milhões de portos, ventanias ou maremotos 
apenas reafirmar a condição intrínseca

-somos o próprio oceano em que se navega toda a existência

sexta-feira, 18 de março de 2022

marré deci

em dias de puro sol à sombra
o azul com blues
ao sul de melodias atlânticas
aninha anzol e linha ao horizonte

sexta-feira, 11 de março de 2022

a jupiter and mars

começo donde me findo

a revolução do sol
é também a lua cheia

a força bruta está na in potência 

pela lei do contraste,
todo oposto é completar
só há nascente se poente
e a causa da tristeza é a mesma da alegria
o fluxo é refluxo e contrafluxo

o caminhante não se deixa caminhar:
é o caminho em si



quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

mientras

enquanto houver tempo
melhor tempo será

em que pese certo pareça não passar
tudo passa

em que leve pereça
cada qual ao seu durar

eternidades de minuto
ou existir diminuto

a memória debela o olvido:
neste lapso contido
ousamos perdurar



quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

lacração do bem

o poema é a lacração do bem. arremata uma ideia, emoldura a sensação e reverbera.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

inter_mim

habito
o interim 
entre lobo e o carneiro

amor fati

Somos resultado das escolhas? E quanto há de controle sobre elas? Decidimos com a plena consciência, domínio do fato e informação sobre consequências? Elegemos caminhos pela livre vontade ou pelo fardo das circunstâncias? Quantas vezes escolhemos na encolha, sob a legítima falta de controle? Quanto há de providência no pouco que imaginamos deliberar? Quantas vezes decidimos na encolha?

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

a_teu

fico a teu lado
fico ateu
ao teu
lado
fico
fic

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

aporia não me aporrinha

e tenho dito...
tão pouco
tampouco me dito
por tanto que não meditar