(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

antiquário

cousas antiquadas, Rudolph Junger


sobre o que é antiquado
já não se senta a presença

a ausência está posta sobre a mesa

quem já cenou aqui?
quais eram os assuntos e dramas familiares?
com o que sonhavam?

os ecos no jacarandá respondem quase mudos

o brasão do império, a bailarina de porcelana, o vaso chinês, a luminária art noveau, o candelabro, a cristaleira, o jogo de taças, a prataria, a caixinha de música, os quadro de casas coloniais prestam valiosas lições de tempo:

-a objetiva serventia das cousas
-a perecividade dos sujeitos

à margem da inutilidade
as relíquias ordinárias 
soam mais prestativas
dedicando horas à essa ignorada museologia

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

habeas corpus

Cais, Rudolph Junger

a liberdade da tarde
acaricia meu rosto

defronte ao prédio da Justiça

defiro alvará de soltura à palavra

antes do fim do expediente
antes que anoiteça

derradeiramente
à revelia de águas mortas
chegam-me versos engarrafados no cais da Praça XV

transição

down_town, Rudolph Junger


no olho do Centro da cidade
caminho em retrospectiva
faculdade ali, aculá estágio
na travessa a igreja Nossa Senhora do Parto, que geriu tantas intenções de êxito

nessa segunda-feira quente e dispersa
ouço, apesar de tantos ônibus, o vento arranhando folhas
e alguns passarinhos também

no mais alto prédio da Av. Almirante Barroso o sol de verão explode nas janelas
passeando em panorama, piso em sinestesias
a calçada onde pisou Dom João, segui eu garoto, pousou o passante
e tateio tudo isso agora
na ponta dos pés
sinto pontas agudas de trajetórias

enquanto isso, o relógio marca 40 graus e os minutos deste ano se exaurem

sou levado ao peso das promessas
ao crivo dos erros, acertos, perdas e ganhos
sou levado a me olhar, com barba ou sem, com cabelo neste ou noutro corte

enquanto isso as janelas do alto prédio trincam ao calor do ocaso

um arrebol tremendo mancha a cara dos passantes, como se estivessem todos iluminados

estão todos puros
restou tudo claro

uma força se pondo em algum lugar
cujo resquício esverdeia esperança

há milhões de esperas
silenciosamente gravadas nessas caras passadas
nelas, me vejo

dormitando a angústia súbita do novo
sobre fulgaz leito de pertencimento

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

toada

Imagem do Google

nesse silêncio louco e absurdo
espero ouvir o que me fale
como jagunço de lança empunhada
extorquindo a declaração amada

-não
quero não
não isso-

quero só
uma boa toada
ou quase nada:

a sem razão do meu lado
sorrindo do meu riso

não me venha com lichias

não me venhas com
lichias
léxicas
líticas

quero que vejas
-as desimportâncias
na calçada
-o passarinho solista na árvore de concreto
-o velho baioneiro ao desdém dos passantes
-a cor das frutas à porta da velha quitanda
-a derradeira brisa avisando chuva

com aquela
Ela
hei de flanar de mãos dadas
a desrumo

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

moedeiro

não ter hora de acordar
ainda que o corpo
-escravo da rotina-
insista em ser pontual

domingo, 11 de dezembro de 2016

Paulo de Frontin

as janelas olhando viadutos
guardam casas com a tv ligada
mesa posta e promessas de natal

essas janelas não cansam com a falta de paisagem
por décadas, fiam-se em carros entrando no túnel
desde Paulinho menino e agora seu neto

o mundo mudou em volta
mas as janelas fitam a mesma esperança:
a intangível Guanabara

domingo, 4 de dezembro de 2016

croquete de botequim

sinto sim
simplório sentimento
de insólito argumento
que minh' atenção irreleva

ao qual porém me rendo

um coisa assim
tipo croquete de botequim

com_tudo

com tudo
contudo
algo esparsa

catarse suspensa na atmosfera da tarde



falaria todas as coisas
não ditas
cogitaria canções guardadas
e acontecimentos bem ordinários

falaria sobretudo o que não aconteceu
e que deixou de ser
no átimo passado

copiosamente diria todo desconsolo que assola
à sola dos pés
em cada passo vagueando
um caminho

contaria essa catarse suspensa
na atmosfera serena da tarde
que sob a chuva
teima falar-me

sábado, 3 de dezembro de 2016

lei de Hooke



quando me afasto de mim
reafirmo quem sou:
feito elástico
volto mais intenso ao ponto
partido