(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Despacio, despacito

Quando criança, uma das maiores alegrias era comer risole engordurado do botequim onde meu pai tomava café, nos intervalos do escritório. Minha mãe ficava fula da vida, porque depois eu mal almoçava, alegremente saciado.

Fora dessa subversão do risole e algumas bicadas na caipirinha que ele me consentia na infância, meu pai, advogado e depois juiz, sempre foi de indefectível postura, propriamente um fiel da balança, aquela libra de Atena cega, a estátua de bronze que ornamentava sua mesa de trabalho.

Sempre gostei de brincar no escritório, mas o Direito, algo que parecia tão enfadonho, caiu-me como consequência natural de outros gostos, revelado em teste vocacional. Afinal gostava de ler, escrever, argumentar, apesar de tímido adolescente.

Com o Flamengo, tudo foi mais precoce. Nasci no ano do célebre mundial. Em minhas fotos mais remotas, vestia um gorro rubro-negro. Nasci quando Flamengo era mágica, Zico era super-herói. Passei a torcedor fanático só na adolescência, mas a identidade de torcedor flamenguista era irremediável herança, transcendente à paixão de cores, à influencia paterna, e até às vitórias épicas: cristalizou-se como essência, como destino inevitável.

Assim, nasci Flamengo e com meu pai, depois de um jejum de décadas, em 2009 vibramos o Hexa do Flamengo (sim, foram 6 e ninguém há de negar). No gol do título, de Ronaldo Angelim, ele ia e voltava à janela da área, acendendo e apagando intermináveis cigarros. Passava na sala, olhava, xingava, saía, ia a TV menor do quarto, depois à área, e outro cigarro.

Ele como eu, era ariano. Me refletia nos mesmos tiques de teimosia e impulsividade. Batemos muita cabeça.

Criança, virei uma TV, daquelas de madeira, no chão; tentei acertar sua bota de gesso com um paralelepípedo; sumi um dia todo e, em resposta ao seu desespero, respondi em rima "estava na casa do Léo, comendo bolo e pastel".

Eu era criança terrível. Mas como isso o divertia, como ele ria de tudo o que eu aprontava. Havia uma inegável cumplicidade nisso.

Cumplicidade também havia em entender meu pavor do colégio. Assim, antes de me deixar, abastecia o carro lentamente, pedia ao frentista para limpar o vidro com toda calma. Aquele adiamento da hora de entrada era proposital e confortante.

Com a separação, fomos nos perdendo mais de vista, a relação pai e filho entrou num patamar de compromissos, tudo ficou menos leve e mais retraído, até que nos reafinamos por um bom período, durante minha faculdade de Direito.

Depois, o peso dos concursos e das expectativas de resultado que me punha; os desencontros ideológicos e a frustração com meu partidarismo em favor da minha mãe.

O pai de agora foi se afastando. O pai da infância foi se reaproximando da imaginação.

Hoje, porém, foi decretado estado real de ausência, devidamente certificado e homologado, em todos os trâmites cabíveis.

O pai passa a personagem de lembranças, que me surgem desordenadas, desobedientes a qualquer senso de cronologia.

Lembro, sim, do gosto do risole de botequim. É a sensação mais concreta que me toma agora.

Pois o inconcreto me assola. Uma inexistência inefável, de perdões e possibilidades que não tiveram seu tempo. Tudo isso me assola sim, mas transcende: quando olho a mesma imagem de São Judas, diante da qual ele tanto pediu pela minha saúde quando nasci amarelão.

Subindo o olhar à cúpula da minha igreja preferida, repleta de vitrais simbólicos, busco uma alegoria que esclareça a perda, que desvende uma vida inteira.

Mas não há. Sobram dúvidas, com as quais rabisco essas linhas.

Diz-se que a vida é curta e rápida. Hoje não parece. Vejo-o em foto remota, de tempos tão enamorados de minha mãe, debaixo de frio mais árduo que o de hoje, posando ao lado da placa argentina "despacio".

Despacio, despacito: tudo lento vai e volta, se repetindo incansavelmente na memória.

A realidade da vida não é sorrisos de Instagram ou famílias perfeitas de comercial de margarina. A verdade está no oculto, nas falhas, nos desencontros, no que deveria ser e não foi.

À revelia dessa lucidez, porém, o velho álbum de retratos termina com uma perfeita foto, em que ele me olha bebê, cheio de ternura e orgulho. É digna de um prêmio.

Essa mais-que-perfeita foto das antigas, na verdade, parece registrar, instantaneamente, um momento em pleno e vivo vapor de acontecimento.

Prova disso: se arriscasse usar barba, o veria em mim, assustadoramente.

O tempo é tanto e pouco; a vida é curta e longa. O começo é despacio e passa ligeiro.

Enfim, depois do fim, o que fica é bom e a vida se renova.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

O dia fatigado ao sopro fino do inverno esvaído
trouxe-lhe respostas imediatamente óbvias sobre soluções cotidianas:
-quando nada acontecer no tempo esperado, aperte um botão
(abrirá, ao menos, o sinal de pedestres ou a porta do trem urbano)

dessa revelação, transborda uma questão cruel:
o que fazer dos problemas desautomatizados, quando não se vê onde apertar?

aperta-se o botão da camisa, como placebo?

ou o imaginário botão do peito, que faz cessar o doer?

ou o botão da rosa abrirá o poeta da cela do lirismo?

surrender



entre espaços insanos de mensagens eletrônicas
que tramitam na atmosfera poluída do centro da cidade
domita o silêncio plano
em pista livre ao incerto e não sabido
calo sobre o calo
e insisto nesse silêncio ínsito
como se lhe cobrasse alguma revelação indizível
numa sanha de arrancar da flor o fruto
ouço-me em hiato lacônico
bato-me em leves prolapsos
debato-me ao umbigo
implodo-me subliminarmente