(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

quarta-feira, 21 de julho de 2021

ser mugente

assento
politicamente incorreto
sobre o couro cru
côro curtido
d'um semovente

a mobília muge
como fazenda houvesse
neste departamento

lost in love

a incansável reticência

ressentida, reti-sente

dispensa ponto com vírgula

é inimiga do fim


earbuds

o que me passa?
o que se passa?
que te pasa?

ouço o mundo mudo a perguntar

terça-feira, 20 de julho de 2021

moradores subsquentes

O edifício datava dos anos 50, quando Copacabana era outra praia, de bossa nova em piano bar e alguns boleros nas janelas. O apartamento sofrera algumas modificações estruturais, especialmente pelo mais recente morador - adepto do conceito aberto. Anteriormente, o imóvel abrigou uma longeva proprietária - possivelmente desde a construção. Tratava-se de dona Florinda, sobre a qual não se sabe por contato direto ou estórias, mas por esforço imaginativo a partir de vestígios encontrados. Florinda era funcionária pública, como denunciam as ofertas espistolares abundantes de advogados jurando causas ganhas sobre verbas atrasadas. Era solteirona, posto que ao seu - incomum - inventário foram chamados sobrinhos e irmãos, sem prole nem consorte. Era também adepta do dinheiro em espécie, longe dos bancos: dispunha de um cofre menor, escondido atrás do criado mudo; e outro maior, reforçado por voltas e senhas, adentro do armário. Com suas economias, investiu no luxo do banheiro inspirado nos hotéis veranistas de Araxá: mármores íntegros cor de rosa no chão e na evidente banheira. Apostou na porta ornamentada com rosa cruz bem talhada e, com o passar dos anos, agravou o hábito de chaves, trincos e fechaduras, como se a fragilidade física aumentasse na mesma velocidade da violência do alredor do bairro. No canto da sala de TV, fantasiou com incontáveis novelas, das seis às nove e, tantas vezes, esticava a um filme policial de madrugada, a pensar nas vississitudes dos feitos e não feitos da vida e nas chateações da repartição. A vida lhe seguiu um curso cotidiano, pão com manteiga, da lida, do bom dia no elevador aos vizinhos, repetindo-se isso tudo, ordinariamente, até que bom tempo se passasse, sem perceber: de jovem independente e de bojudo ordenado à senhora celibatária ansiando - em júbilo - à jubilação. Quando o tal sonhado dia chegou, foi-se a labuta e veio a profusão do passado. Dali em diante, a rotina -sem deixar de ser repetitiva - tornou-se apenas mais arrastada (como seus passos), até que se aproximasse o minuto implacável. Sob o peso de lembranças natimortas, Florinda partiu, de súbito, caída no chão do banheiro, sendo as autoridades e seus colaterais comunicados após dois dias de silêncios e desconfianças dos porteiros. A vida - embora não lhe tenha sido materialmente ingrata - foi, por outro lado, bastante comedida em aventuras, extravagâncias e surpresas. Florinda seguiu o curso estável e previsível, do primeiro ao último dia naquele canto, que deixava guarnecido com dois vestidos de baile e muitos outros domésticos; alguns contos nos cofres; uma dispensa à metade; e tantos sonhos irrealizáveis.