(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Oitenta e oito

Era tarde da noite quando Seu Oswaldo recebeu, com muita simpatia, aqueles andarilhos e potenciais inquilinos - os quais já contavam com a vênia do porteiro, após alguns minutos de prosa pelo gradio.

O simpático proprietário fez questão de se apresentar como oriundo da Penha; morador daquele tranquilo prédio de Copacabana por quarenta anos, sendo sua esposa síndica pelo mesmo período. Destacou que, agora, ele e sua senhora - então acometida de Alzheimer e desprovida do concatenamento de frases - residiam em um 200m2 na Barra da Tijuca, com a filha e a neta, essa fazedora de joias em prata (inclusive um belo brinco em tamanho de moeda de um real).

Levemente apresentado, Seu Oswaldo passou a descrever o imóvel e a mobília, a começar pela mesa de abrir, escondida em uma cômoda na janela da sala, perfeita para jogar um bom carteado. Explicou também sobre os tantos armários, fundos falsos e aberturas em tetos rebaixados, onde guardava ferramentas e, até, um para-choque de Volkswagen.

Indicou os ventiladores de teto, a persiana externa e os azulejos bem conservados, sempre ressalvando a necessidade de faxina.

A cozinha, em disposição diagonal, contava com o exaustor original da construção, instalado na parede sobre fogão, acionável pelo decrépito interruptor.

Entre as descrições, fazia uma pausa simpática, onde contava uma passagem curta da rotina no imóvel, sem demonstrar qualquer saudosismo ou lamento -  apesar da implacável força do tempo lhes ter interrompido a vida ali.

Voltando ao corredor, mostrou o derradeiro compacto armário, onde, na parte mais baixa, guardava suas garrafas de uísque. 

Seguidamente, reforçou a virtude tranquila da rua, próxima ao parque do Chacrinha, onde se pode sentar pela tarde e fazer amizades em uma agradável conversa descompromissada.

Destacou a vizinhança idosa e ausência de rapaziada festeira, como em outras épocas, em que, na qualidade de mandatário de sua síndica, bateu em apartamentos zelando por respeito ao sossego.

Seu Oswaldo desenvolvia uma fala cuidadosa, requintada em detalhes descritivos, com expressões e traquejos arcaicos, com aspecto de língua morta. Ao mesmo tempo, porém, o fazia com vivaz atualidade, causando ao interlocutor anacrônico paradoxo, como se a prosa transcorresse em idos mui remotos.

Ao final, despendindo-se dos possíveis contratantes, indagou quantos anos imaginavam que ele tivesse. 

Após um minuto de suspense, orgulhosamente respondeu "oitenta e oito, ninguém diz", cruzando a calçada com sua camisa xadrez, jeans e All Star de couro branco, carregando a leveza de quem lembra do decurso do tempo somente quando lhe é ofertado o assento preferencial no vagão de metrô, por força de lei.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

ora, bolas

ontem ainda
hoje
a folha seca
fez primavera 

a atual idade é 
atualidade que brincou de ser

todo fim de dia em sol 
nascente
é poente o começo de lua

o remendo a tudo remedia 
pois o fragmento é 
parte integralmente viva

o futuro encandeia o passado
o pretérito arremete o porvir
e ora, bolas
enfim, nos presenteia

sábado, 7 de dezembro de 2019

cuotas sin interés

sí, se puede

vivir sin prisa
esperar la brisa
hacer la siesta
ablandar mientras hay fiesta

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

toda via es caminho, todavia hay camino

todo por que paso
figura en mi su espacio
lo que me queda
es trozo mio
parte tuya
y sueño nuestro

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

espelho, espelho teu

o reflexo que te vejo
talvez seja mero bordejo
do eu que não encerra em ti

sequer tua presença 
veramente seja
nada além de esboço imagético
de um riso protético
que se quis espelhar



quarta-feira, 6 de novembro de 2019

faixa de pedestres

uns
comuns
comungam
como tantos
que passam sem tato
ou sequer fazer sombra

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

perfídia

minto poemas
do que não sinto
sinto sentimentos
do que não minto

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

que horas são

o sino da minha aldeia é dolente
soa o tempo que passou
ora faz parecer outroras

a sina da minha aldeia
é seguir 'inda pequena
como se nem tivesse crescido

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

cala_frio no super

sob a primavera fria
a rootina engatinha
meu pensamento sem ignição
corto meu desejo de silêncio
tossindo como o cão

humanóides caçam amores nas gôndolas
a música do rádio é antiga
o sonho é ontem

o amanhã é mera terça-feira

a fatura do cartão, mobília nova
a cicatriz nos dedos
as impotência d'alma

tudo o que o dinheiro não pode comprar

as segundas frias
ventam verdades cortantes
à beira-mar

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

curriculum vitae

escrevi um livro
ergui minha casa
mas minha maior ambição de homem
é não deixar de ser menino

terça-feira, 10 de setembro de 2019

sobre a década

da rima ao dessarrimo
anima à incerteza
seguirei na mesma?
nada extremamente revolucionário me houve

o Flamengo será de novo campeão
os poemas 'inda prometem uma janela aberta

não há mais cinemateque
mas há mais botafogo
e cinema estação
e ameaças de happy hour

há trabalho e ponto
oras escassas vírgulas
três pontos quase algum

há um mundo por ver
mas já vi Japão

o mar há de me prover?
compro-me o dia de cada pão

há um dia por vir
mas há dias sem porvir

houve choro e vela
nenhuma serenata

houve casas
e casos com que não me caso

houve começo sem término
e segue o erradio intervalo

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

a casa será

sempre
o meu lugar

o novo apartamento, toda madeira,
cimento cimento queimado, porcelanato, embutidos, o velho cofre e seus segredos

bolha antiruído a urbe louca

nenhum artifício se impõe

os vasos e livros que vieram
remontam a velha casa em território novo
como se fosse casco

e eu não houvesse fora dele

nada é tão novo que não possa ser velho
então
está é aquela

o concreto é o mesmo
teto
que abriga
a viga
que arrima
o esmo

terça-feira, 27 de agosto de 2019

aterro

alheio da hora
além dos edifícios
oculto o mar

que em maré
quase morta
da baía
degola o vento com apuro

a liberdade escapa e não há remédio

a senhora busca ao longe
o inculto espia o capítulo
os namorados estão fugidos
os despretensiosos fazem yoga

enquanto loucos remotos à luz do tarde

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

tectônico

o vazio essencial é magma

as palpitações oriundas,
terremotos

o desespero, erupção

domingo, 25 de agosto de 2019

de repente mente

tudo súbito
o dia é curto
e sem franquia de bagagem

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

ocupação

sobre minhas ruínas
construí um plano acima
para ascoltar o remanso
ao fim do dia

quinta-feira, 25 de julho de 2019

passarim

o canário belga
canta
a plenos pulmões
dentro da gaiola
em meio a prédios
que também
engaiolam
gente

domingo, 7 de julho de 2019

iluste desconhecido

anônimo antônimo da multitude
Antônio é mero heterônimo
do antagonista que atravessa a pista

segunda-feira, 1 de julho de 2019

uva, passas

a ideia que me bate
ou o amor que ascultas
tudo resiste em partícula
particularmente leve

ao sabor de brisas
semeando o futuro incerto

saberá Deus se algo resta
quando não mais fomos?

poderia me estender por aqui
mas prefiro
encurtar
o verso

sexta-feira, 21 de junho de 2019

bailarina II

o cais enluarado
alumia o caos

olhando o nada, vendo tudo:

o que pede passagem
transbordando à tarde
venta à toa a balsa nua
atracada à lembrança

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Rio do que não vejo

os transeuntes do Largo do Machado
os frequentadores do café Lamas
os cinéfilos do Roxy

as velhas senhoras e sete segredos à porta
em seus pequenos cofres
cabiam sonhos singelos

e contos de réis

a sacola da casa da banha
o mingau da leiteria mineira
o mil folhas da Cavé
o chaveiro de Nossa Senhora

a velha Atlântica
o Flamengo sem aterro
o areal de Ipanema
os banhos em Paquetá

os casarões do Cosme Velho
o cassino da Urca
as sapatarias da Carioca

adentra às remotas imagens
um sonoro bonde

terça-feira, 21 de maio de 2019

decontruyendome

de que soy hecho?
lo que no queda son mis hechos
los cuales cambiaria en semillas
y pues,
de rodillas
sembraria palavras sencillas
hasta alejar la monotonia

segunda-feira, 20 de maio de 2019

caem co'alma as aves

prostitutas
tanto matutas
tampouco astutas
à avatlântica

vãs
(sem lei nem rei)

todas mudaves
soturnam o tom da lua
essas mariposas das ruas

quão graves decotes ocultam?

sábado, 18 de maio de 2019

hipoteose

boas conversas não tiveram
hipóteses não os couberam
lindos, findos:

o que não foram?

temprano

o hábito que me habita
ao bocejo de mau hálito
vem me dizer
bom dia

descaminho

perigosas adequações me ocorreram
depois do tempo que vivi a esmo
(tentando ser eu mesmo)

arestas tolhidas
até que me volvesse
perfeitamente polido

desalinho

todo desencontro
é caminho de volta
em sol

desaninho

tanto buscava
o que não faltava
até que me perdi
de casa

sexta-feira, 19 de abril de 2019

mientras

uma estrada que leva o amor à terra
uma praça com chafariz e igreja de interior

(suspiro entre dois tempos)

uma reta, uma seta

até o barulho de mato
enquanto cresce

terça-feira, 2 de abril de 2019

sol em áries

ao repente
o sol eminente
arrebente
o breu latente
à luz vigente

precipito um novo começo
ao primeiro raio d'amanhã

meu apartamento novo é virado ao renascente

terça-feira, 26 de março de 2019

vista lateral do mar

a resposta não encara a pergunta
viver é arte do desalinho

do apartamento quitado em planta pela avó
mirando os que tanto passam
- dióxidos ascendentes e aspirantes

habito o hábito, em 2019

estico o pescoço à janela
ao destaque de classificado
espio sem revelar meu estado
a paisagem de afagar meu dia

sábado, 2 de março de 2019

indevassável

quando a estrada de chão não for lonjura bastante
mudo à remota montanha
onde vozes e fumaças não alcancem

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

km 17, estrada de chão

longe de tudo
contudo
com tudo

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

ultra-passo


além de mensagens protocolares
desafia o muro à paisagem

que dirá o seco sol à longa estiagem
aprumando imagem
refletida no além mar Arpoador?