(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

sexta-feira, 19 de março de 2021

Nos tempos da buzina

"Era tudo diferente", consignava o uberista, inconformado com a criminalização do flerte maroto do trânsito carioca. "Quando avistava aquela beldade já diminuía a marcha aguardando o sinal fechar", destacava. Na sua descrição, a buzina era a variante motorizada do assovio. Ressaltou que sua buzinadinha era bem leve, uma batidinha de punho direito cerrado, bem discreta, para não assustar. Ainda assim, a revolução feminina foi gradativamente repelindo a irreverência do condutor: pouco a pouco aumentou a incidência de respostas com dedos médios em riste. Invocando romance, cortejo e gracejo, o uberista asseverava que sua avó conheceu sua avô pelo repique de um clássico Ford Bigode, de modo que, sem aquele - hoje malfadado - som, sua estirpe sequer existiria. Relatou ainda, com riqueza de detalhes, abordagens realizadas em diferentes épocas, sempre com sutileza e respeito até que, hoje, fosse contido pelo medo, determinado pela experiência de um colega de praça, cujo casamento e emprego em firma foram destruídos após uma buzinadinha marota à vizinha da Vila da Penha. "Vou te dizer, não existe infração mais grave no Código de Trânsito do que essa, antes perdesse a CNH".

quinta-feira, 18 de março de 2021

Socorristas

Eram anjos do asfalto, atuando em trinca: o chofer boa praça, o Dr. de farda azul e o auxiliar repleto de histórias. No limite das madrugadas, tantas vidas adormecidas e outras prestes a não mais acordar. Para essas, antes do último suspiro - e até depois dele - estavam a postos, acionados desde uma unidade em Vila Isabel. Não fosse a sirene estrondosa, seriam reféns de engarrafamentos no Rebouças e Santa Bárbara e, por um átimo, falhariam na missão. "A vida tem pressa" dizia o Sancho Pança daquela UTI móvel, imediatamente emendado pela assertividade filosófica do Dr. "a vida é ávida". Dentre tantos socorros memoráveis, destacavam a eficiência do repertório de substâncias reavivantes e das técnicas de ressurreição: "já salvei um bacuri com massagem cardíaca desenganado pelos médicos", gabava-se Sancho. Acima da expertise e frieza para o salvamento - talento que só lhes escaparia se o paciente fosse um ente querido - ressaltavam a sinergia daquele trio de profissionais, cuja boa combinação fazia o tempo em missão fluir mais leve. E assim seguiam, serenamente, a desafiar o findo respiro, adiar a derradeira batida. Pareciam gozar de autorização divina para transitar no limiar da existência.

é terna a idade

oito é infinito, repertindo-se
(meu nome em oito letras)

uma ponta partida também pavio curto de porvir

as semanas começam aos domingos 
à meia noite, ao meio dia... os mesmos são ponteiros

ressinto tudo findo
o novo, absinto
a tal ponto já não sei
onde começo e termino 

terça-feira, 9 de março de 2021

adágio sustenido

será todo tempo passagem?
à meia noite, pós estiagem
adentra à janela sábia aragem
a dizer infinita a mais pura imagem
sem ida ou vinda, sempre viagem
e se ousamos entender toda essa engrenagem
a lágrima torna desfeita qualquer maquilagem

domingo, 7 de março de 2021

Sr. Benson

Benson era zelador de edifícios desde que completou o ensino médio, no começo dos anos 90. Residia na longínqua e bucólica Barra de Guaratiba, bairro de praias selvagens, adestrado pelo jugo da milícia. Benson era um sujeito de fino trato social, mulato alto, sorridente, dotado de formalismo e salamaleques dos clássicos mordomos e muito reverente aos mais idosos, orgulhando-se desta habilidade, que segundo ele era o mais valioso legado recebido da educação dos falecidos pais. Casado há mais de década, declinou, por convicção, da prole - acreditava já haver gente suficiente neste planeta. Em compensação, adotou uma trinca de vira-latas de pequeno porte, os quais tratava como filhos. No canto de seu sorriso acolhedor, Benson trazia uma tristeza ligeiramente aflita, a qual se revelava vagarosamente a moradores e passantes do edifício. Cobrindo essas deixas, vez em quando - e com cada vez mais frequência - aparecia em um sustenido sobressaltado, inusitadamente eufórico, rompendo a tal cuidada etiqueta profissional. Nesses momentos, fazia manifestações de apreço afetuosas e ensaiava abraço aos moradores mais chegados à sua prosa, e com facilidade marejava os olhos. Passado esse súbito, ao final do expediente, deitava-se reclinado na poltrona de ofício, e dada prostração resultante, negava-se à troca de turno com seu colega vigia. Desconfiados de possível embriaguez - embora sem descartarem eventual moléstia neurológica - os conselheiros lhe apoiaram em exames de imagem, os quais nada diziam, a não ser confirmar a desconfortável imputação etílica. Tamanho apreço, e de modo a evitar uma consequente demissão por justa causa, a administração do prédio decidiu conceder-lhe um mês de férias. Passado período, retornou, com formalismo original, preservado com afinco por três semanas, até que, em um dia de expediente, apareceu com camisa de time inglês e mochila nas costas, e semblante emocionado. Seguia resignado à segunda oportunidade de rehab, com promessas de retorno breve: "vou ali me cuidar e já volto".

terça-feira, 2 de março de 2021

ocaso e a lógica

nego nega o não dizendo sim
neste vice verso
versa o vice
à espera que cais
enfim de tarde neste Rio de Janeiro
entre os dois irmãos e a pedra gávea 
donde arremete o poente