(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

bonsense

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tudo flui
pra lugar nenhum
quando o sentido me arrota

o mar é
maré de ausência em mim
onda ainda
que arrasta a ode que me acorda

encore
ancora
com corda
de acordo com meu porto
morto de mar
atraco afim 
no fim 

do que me transborda

vou afim
vou ao fim
vou em mim

tudo é rastro
e volta.

natal mnemônico

"Bébé ou Naissance du Christ à la tahitienne", de Paul Gauguin


quantos natais desde aquele Natal?
quem circundava aquela ceia?
quem são aqueles vizinhos?

pois, de repente, passaram-se anos
entre a foto amarela e a digital
a distância curta de uma década

imagino os presentes, as receitas antigas, os velhos quereres de réveillon...
(já não saberia sonhar como outrora)

mas afinal
sou ainda o mesmo

agora
carrego restos dos que não estão
(poucos)
e consigo me olhar com certa ternura

era errante
e só errante erra

perdoar-me tardou mais que uma confissão
(se jogasse a Deus os meus pecados...)

que pecados?

domingo, 21 de dezembro de 2014

love will tear us apart again

amor, amora
mûre
madura

é melhor no pé
do que na boca

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

reticente

sinto reticências no sentido
querer-te não é pontual;
é um rastro que fica,
esperando estar de novo:

retissentir...

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

luzes de Natal

luzes reluzem
há um brilho no olhar
ou brilho a me notar?

...

o Natal se aproxima mas
Papai Noel não existe.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Amesterdão


Red Light District, por Rodolpho Saraiva

Amsterdão é terra do sim, irmão 
porém, "nem tanto ilícito me convém"
apitam sonoros bonde e bicleta 
sobre os perigos das vi(d)as livres

Amsterdão também conhece o não:
vento bem gelado
que faz o bike-taxista sonhar o Brasil
de gente e clima quente
como Nassau um dia o fez

contudo,
alguns nem sabem que Amsterdão tangeia esse fluxo:
atracam barcos e nos canais resolvem morar 

terça-feira, 25 de novembro de 2014

the beat bossa compass

o Cavern Club é o Beco das Garrafas do rock
os Beatles diziam "I'll always be in love with you"
Vinícius, "Eu sei que vou te amar"

eu brincava em terrenos baldios de framboesa sem saber "Strawberry Field"

different eyes, the same things:
caminhos ao mesmo lugar.

underground

the gap is calling:
between me, myself and I
something resists
beyond the fog

sábado, 22 de novembro de 2014

mind the gap


entre o vão
e a plataforma
espreita
um coração 

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

celeste

os galhos das árvores espicham folhas 
arriscando o céu 


do mesmo modo:
eu
esqueço raízes de solos áridos 
rumando blues

o céu é anzol a mim
resto atol no anil
respirando rarefeito
a plenos pulmões 

terça-feira, 11 de novembro de 2014

metapaisagem

somos sóis, por Rodolpho Saraiva

Detrás, deitam sós:
eu e você

(des)pertencimento

quando vejo meu rosto
no porta-retrato da cômoda
sinto-me dono de alguma coisa
que não sou

melhoro em me pensar:
elemento da paisagem
pingo, conto, areia
qualquer coisa à toa

ao chão
-por onde há tanto a percorrer

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Regímen

Os defensores do regímen
já perderam o hímen
(sem saber)

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

não-beijo

o teu não-beijo
tem sabor do queijo
que não mordi

sábado, 18 de outubro de 2014

nós dois



nossos livros e nossas luas
lembranças nas estantes
corações pari passu 
e música doce nas paredes

tudo enfim, tudo assim:
nós dois
sem esperar
por dias que não chegam



segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O grande dia

A cerimonialista repassa o áudio, as flores da igreja, o layout do altar: últimos detalhes do grande dia. Em uma casa simples de Realengo, Simone deixa suas unhas e cabelos de molho. O vestido pendurado no prego, de tantas provas, já tomou a silhueta da nubente. Rogério, noivo, passou a última noite de solteiro em claro, imaginando como seriam suas semanas e domingos, compartilhando TV, cama, flatulências, despertador, rotina, enfim. Na família de Simone há grande preocupação com a reação do pai cardiopata: conseguirá realizar a entrega completa da filha mais velha, depois da longa trajetória até o púlpito? As madrinhas discutem combinações e cores, supondo fotos, poses e quem ficará com o buquê. Os amigos do noivo, por sua vez, pensam nos acepipes e nas doses, contagiados por uma euforia de jogo no Maracanã. Ainda há muitos convidados que não conhecem a história de amor de Simone e Rogério; serão espectadores de filme inédito quando iniciar a projeção de fotos dos noivos no salão de festas. E por falar em fotos, profissionais estarão a postos para registrar o grande dia em retratos de alta tecnologia, cuja durabilidade -asseguram- superará a dos anos de casamento.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

mote

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o poema é feito
pensando em não dizer
o que me diz respeito

sábado, 27 de setembro de 2014

Pensamentos em apartamentos

Descabem todos meus pensamentos
varando a madrugada
arranhados pelas paredes finas
desenganando o silêncio
moscam às luzes vivas dos apartamentos

Copacabana sempre fala, murmura, tumultua.

(Jamais aquelas serras verdes
onde a palavra era cara e pesada)

aqui versam em tiro curto e reto:
quanto mais os afeto
mais me acertam.

E antes de terminar o poema,
alguém chama o elevador no último andar.

Sábado

Dois andam sós
entre uns e outros
só pela noite
até que lhes venham sóis
e amanheçam a solidão.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Sabedoria

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O silêncio é longo e lento
rola por anos
enrolado pela língua
até que um dia não se aguenta
e grita
as razões de andar calado

domingo, 24 de agosto de 2014

Os escombros da realidade

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"Os escombros da realidade não sufocam o sonho": assim terminava um romance ao qual Gilberta dedicara algumas tardes de leitura. Ao seu redor a realidade era imperativa: as vacas magras, os sertanistas castigados pelas chagas da seca, milhas e milhas de terras inexplicáveis.

Nesse cenário árido, Gilberta era capaz de irrigar sua vida com pequenas fantasias. Os livros e poemas eram seu máximo acalanto. As leituras inspiravam escritos e, assim a literatura lhe costurava os duros cortes da realidade.

Pela internet, Gilberta se correspondia com amigos de cidades distantes, e tinha por eles o mesmo apreço dos bons vizinhos de sua remota vila. Não dormia sem desejar-lhes boa noite, demonstrando-lhes uma gratidão sem motivo algum que, aos olhares mais apressados, ganhava tons de devaneios.

Certa feita, um dos correspondentes respondeu Gilberta, com votos positivos.  Em segundos, o absurdo se desfez.

"Os escombros da realidade não sufocam o sonho": a frase do romance de Gilberta, sem literalidade e intenção, formou-se na mente do correspondente que, contaminado por gratidão, abdicou do tranquilizante e dormiu em paz naquela noite.

sábado, 2 de agosto de 2014

filosofia da noite

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só sei que não sou
sei que sou só
nada
o que sou
em parte, os sonhos que gostaria ter

mas cogito que não existo:
as certezas da noite logo vão amanhecer

segunda-feira, 28 de julho de 2014

2014

Quando olho este futuro
e me vejo do passado
dou-me em conta:
os fios brancos assolaram a todos,
Tim Maia morreu
o Brasil perdeu outras copas
e faixa de Gaza está sempre em Guerra.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Coerência

-Não sei se falamos coisa com coisa...
-Me dá um abraço? Não há nada mais coerente do que um abraço.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Cais

Há um lado meu que é só partida
e acolhe o indizível do final do dia

Há um gosto meu de sol deposto
e um nublado reposto
do rosto que não tem mais volta

Há um porto meu que é só saída
d'onde minhas naus seguem
ignorando a vi(n)da.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Sonha comigo?

não sei quando termina sonho
e começa realidade
só sei que não é quando 
acordo.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Haikai

Eu digo hai à gringa que vai
da Cinelândia
e o metrô frena e a gringa cai

Imagirnal

imagina um marginal
que vive à margem
mas ainda se leva pelo rio

e assim, com arrepio
estranha o estranhamento
de sua rotina comedida

Desinteresse

o desinteresse é recíproco e verdadeiro
não se preocupa porquê

necessariamente tudo 
desimporta

sobretudo o que se passa à aorta

e também o que se fecha à porta
para nunca mais se ver

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Recaídas

Aos amores que já foram
se voltarem, lhes diria:

que não se estragam;
as provaria no dia seguinte
com gosto de amor dormido
de pizza mais gostosa

Deontologia

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não sei se o amor fica no silêncio
ou na palavra
pois tanto dizer te amo
poderá parecer o inócuo antibiótico sobre o eterno organismo

prefiro crer que não sei
porque de fato o que digo hoje
termina semana que vem

nossa poesia talvez esteja nos átimos incontáveis

enquanto nos fitamos
sem paredes nem palavras
tudo que nos atravessa
tem tom de ameaça

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Por que Vivi vendeu o Neruda com dedicatória



Talvez a vida de Vivi fosse lida
cozinha, filhos, as brigas e escapadas do marido
espera cansada diante da TV
rotina repentina que o amor nem viu chegar

e ainda folheava as páginas de Neruda

Vivi não sabia regras do "jogo do amor"
cria em vencer perdendo
e dolorosamente um dia se vendeu:

botou Neruda no sebo.

da brusca poesia da mulher amada


a busca há de ser brusca

hei de encontrá-la em um descaso
que, ante o ocaso,
o desatino me haverá de arranjar

então sussurrarão nossas línguas
o único idioma:
poesia.

e tocarei a minha fé:
a_teu lado.


Dialética

Trocávamos poemas dizendo:
-outro, sim, outro, sim!
outrossim,
os poemas nos t(r)ocavam.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Outrora

No meu tempo tudo era descontraído
amarrava corda na árvore
os carros não passavam em ruas

minha mãe só advertia:
Não aceite bala de estranhos.

sábado, 7 de junho de 2014

Soneto desencontrado

O soneto com quem dormi
me amanhece sorrindo
mas a culpa não é minha
não lhe sei dar forma alguma

Sou poeta que ama o amor como matéria prima,
mas desconhece rima
e métrica, 
um acaso forçado para não pisar no pé

Dizer palavras é mais fácil que comungar silêncios
nada rima ao som do desalento 
e me fala dessa sensação

Dizer é quase um tormento
que consinto calado
só neto a teu lado 

domingo, 1 de junho de 2014

Olho d´água



Vejo o mar
de Copacabana 
mas o que me há é montanha:

Sumidouro 
com aquele rio que me percorre
da ponta do pé ao fio da sobrancelha

Vejo o olho d'água regurgitando o meu defeito
-sou rocha sem dó de erosão.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Buzinada



Dr. Raul e Dona Altina se conheceram numa rua do Méier, nos final dos anos trinta. O tio de Raul, próspero comerciante da rua Conde de Bonfim, na Tijuca, dispunha de um coche, raro privilégio para as famílias da época. Volta e meia, especialmente aos Domingos, Raul tomava o veículo emprestado e, às vezes, acompanhado por um amigo, fazia sonoras manobras, em velocidade reduzida, praticamente em primeira marcha, quando se deparava com alguma pequena sestrosa. Altina saía da missa sozinha naquele domingo, pois sua mãe, asmática, optara por comungar pelo rádio. Nesse instante, foi interceptada por uma buzina galante do Ford-bigode. Aquela abordagem, hoje em dia tão ameaçadora (por conta da violência urbana), inaugurou uma comunhão de quarenta e sete anos, frutificada por quatro filhos e dez netos. Dr. Raul e Dona Altina hoje sonham sobrepostos em prateleiras do São João Batista, mas durante todos os anos, nos almoços de família, regozijavam-se daquele encontro.

Césio-137

O poeta tem o dom da sensibilidade;
e aos grandes poderes, grandes responsabilidades
-diria o Homem-Aranha

Suas matérias-primas são elementos radioativos:
angústia, solidão, insegurança.

Sem medo de contágio, trabalha a energia atômica de um poema!

domingo, 25 de maio de 2014

O Eu lírico está nu

O assunto era:
ela
que falava pelos cotovelos
que voava feito cotovia

Mas
quanto mais o eu lírico a pretendesse contar
mais de si próprio versava
e sua nudez realçava

Até que o leitor berrou:
"O Eu lírico está nu!"

-Sim, ninguém pode ser mais nudista que o rei.

A estrela do tempo

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Conheci-me e já eu ali não restava
perdi no tempo a certeza do começo
e na língua recebi um poema lento
com a dúvida do que então me perguntava

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Ghostlover

Amo-te em olhadinhas sutis
em cobiçadinhas pueris
deixando-me tropeçar em tentação
atento a tua desatenção.

Quando te perdes em ti
é que brilha tua beleza
e me ladra uma certeza:

Eu, a noite; tu, a estrela
sou o ghostlover que te assingela
ao pé da cama.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Luto intermitente

Com quaisquer ela tentava 
esquecer-se do grande amor
convencer-se de que não o amava.

(tanto fazia que
até se esquecia 
do esquecer)

E o grande amor, então, restava
naqueles caras que despediam-se desde o começo,
na dor emudecida do fim

e no luto intermitente.

sábado, 17 de maio de 2014

Coma!

A amante dizia:

me coma
até a coma
sem coma

(respirando reticente)

Refrão dum samba canção

Saudade 
é um pouco de maldade no meu coração
que se desfaz em sete faces
as partes desmedidas da minh'a ilusão

(Bis)

Amador

Escrevedor de poemas como quem não sabe:

Amo a dor, 
amadorística
dor com a qual
um dia
sábio
farei alegrias.

Sós de Ipanema

gringos brancos
na área de areia
alvejados pelo sol
alvejantes de brancura
alvejados pelo olhar da negra sereia
à espreita da onda sorrateira

Todos sós, sob o sol 
de Ipanema.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Afinidade

Afinidade tem limite!

Se ela gostasse de tudo que gosto, 
não gostaria de mim.

Na hora H

Na hora agá somos tão frágeis
desnudos e sem disfarces
em amostragens de micromarcas que o tempo deixou.

No bréu da alcova, então, caçamos um no outro 
a fenda
onde se possa caber dois minutos
e esquecer, por dois segundos, 
a solitária eternidade.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

ContráRio

O Rio corre 
mas sou contrário:

a todo o movimento
gargalhadas
encontros
bares 
namoradas
arpoadores
luzes
luares.

-Ô Rio, sócorre!
Antes que eu me afogue.

domingo, 27 de abril de 2014

A ausência


cadeira-de-ausente, por Rodolpho Saraiva

A ausência está sentada
na cadeira-de-canto, cansada
de perna cruzada
rindo feito namorada:

do sonho que não durmo.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Comuna

Não sei dividir;
sou liberal-capitalista que crê na abundância do universo,
em mares, montanhas, recursos, sistemas solares, rimas... i-nes-go-tá-veis.

Qual a virtude maior da divisão que não o exibicionismo?

No Comuna sorvo a cerveja importada,
esbarro em gentes que acreditam no socialismo utópico
e consomem álcool, baseados, pessoas, músicas e paredes.

O consumismo é o fim do comunismo.

Pelo pó das ideologias,
mais retóricas do que práticas,
sei que o bem já não se importa com quem
e a Igreja já detém a patente da parcimônia.

Importa mais o que não me mente,
a verdade que está ausente,
e todas as convicções que não vejo agora.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Café latte

Eu não enxergo a vinte metros de mim com clareza
mas meu café latte
avisa que logo ali vem uma gata.

Café da Livraria Cultura, Rodolpho Saraiva

terça-feira, 15 de abril de 2014

Reviva

O passado não te condena
pelo que já te foi martírio
ou por que sonhavas...

"Ainda é", "pode ser" ou "nunca deixará"
dormitam na caixa abundante das lembranças,
até que a vontade irresistível lhes abra.

O passado não cabe no passado.

sábado, 12 de abril de 2014

Juras obscuras

Imagem do Google


Acredito em juras obscuras;
não naquelas feitas às turras,
com lordose 
ou apoteose
(plateia, fotógrafo, filme, megapixels)

As juras bonitas nascem na alcova
e morrem ao raiar do dia.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Á_vida

A vida está passando tão depressa
que nem é preciso que se dê pressa
pois tudo corre e sai de seu lugar sozinho.


sexta-feira, 4 de abril de 2014

Décadence avec élégance

A queda é elegante quando é livre
e longa
quando deixa o chão cansado de tanto esperar.

A poesia me ocorre

Ao acaso, no cigarro que não fumo
(mas me gostaria, se não fizesse mal)
diante das hipóteses, escrevo.

Talvez não: apenas transcrevo um rito ruim, da rotina, das falas, das paradas truculentas dos ônibus...

-Acordo e faço um poema quando a realidade me esbarra.

Sobre mentiras e sorrisos

A verdade não tem dentes amarelos
nem fez clareamento.

Simplesmente sorri:
com um fiapo de milho, uma obturação
um constrangimento ligeiro
e um branco que se quer Colgate.

Sobre o poeta

O poeta tem bossa
mas não tem medo de fossa
sabe sorver uns drinks como ninguém possa
confiando na assepsia da laringe
e no silêncio, alenta as corrrrdas vocais.

Sem berro, sem conflito:
Poeta é um ser que me habito,
e na melhor casa que há em mim resisto:
lá no alto da montanha.

Entre lobos

Circo e Lobão, Rodolpho Saraiva

São tantos os lobos solitários

                 que formam uma matilha

no show do Lobão.

sábado, 29 de março de 2014

Sintonia fina

Uma sintonia fina os unia, como uma conversa de chat eletrônico.

Encontravam-se em devaneios longos, em um idioma de duas bocas, que sempre beirava um beijo.

Chegavam ao ultra-contato, transcendentes à métrica, aos perfumes, ao áspero.

Restavam-se por horas, até que se tornassem poucos, pequenos, quase-nada, ao longo dos prédios, do correr dos carros, da pressa dos andantes, dos movimentos estelares.

Ninguém ousava dizer "preciso ir", essa frase crudelíssima, cardiopática e dilacerante, e cuja dicção exige preparo do emissor e alheamento do receptor, um tipo de violência que não se coaduna com aquela película.

O tempo lhes passava ao largo, ignorado, pois aquela conexão não tinha hora marcada.

sábado, 22 de março de 2014

Canção da chuva



A chuva iniciou desorquestrada,
em um ritmo tão forte;
depois alentou-se cuidadosamente,
escorrendo pelo concreto
em leves batidas
sustenidos nas janelas

Depois da queda colossal,
da poeira baixa e calçadas lavadas
o que reina é a música
constante, entre pausas silenciosas:

-como se em cada parte houve uma nota.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Finito

Se todo dia fosse despedida,
o mundo inteiro à vida se daria
até a última gota,
até o último beijo.

Às vezes, tão seguros, ignoramos o finito:
esse grande valor de existir,
intensamente e livre.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Sobre a ilógica dos rumos

Os rumos são mais lógicos quando retos. 

Mas nem sempre a menor distância entre dois pontos é mais virtuosa.

Devo essa conclusão ao colega de curso de Inglês, um estudante de Física, que iniciou o ensino superior aos trinta e três anos, pois, a vida, até então, não havia lhe franqueado essa oportunidade. É natural de Teresópolis, meu conterrâneo, e também grande conhecedor do abismo soberbo entre as curvas da Serras dos Órgãos e a Guanabara. Apesar disso, também ousou sair do ninho, para estudar na UFRJ e residir em uma república.
 
Um dia, resolveu retomar o Inglês, mas bem longe da lógica: optou por um curso em Copacabana. 

Ao saber disso, indaguei o porquê da escolha, sem qualquer censura à opção tão desafiadora da mobilidade urbana. Ele quase constrangido me respondeu que queria sair um pouco da Ilha do Governador, e punha o skate na garupa da moto, para dar umas voltas pela orla após a aula, antes de retornar para sua república.

Sábia lição!

O planejamento cotidiano e o zelo paranoico com a "perda de tempo" nos fazem escravos de uma ordem automatizada, encarrilhados na "lógica do menos".

Romper esse imperativo e abraçar a "lógica do mais", da individualidade, do non sense, do que faz bem à alma, tornou-se uma tarefa cada vez mais complexa. Desconstruir a rotina, tão bem arquitetada, nos exige desapego.

Mas é certo que sem uma volta mais larga e ilógica, não haveria skate, calçadão, praia, encontros ocasionais e sobretudo, liberdade.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Temporão

La persistência de la memoria, Dalí


O tempo sempre me chegou tarde;
depois da hora esperada.

Os segundos me seguem ao calcanhar...
mordiscando.
É aquilo: 
às vezes, tropeço no futuro.

O passado me custa a passar
sinto ponteiros ressentidos
de um tempo que quer ficar.

Sou temporão, atrasado:
cheguei bem à tardinha
quando o sol se punha de mansinho.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Segunda-feira

A segunda-feira é cinza. 

É o dia em que chove, após meses de estiagem.

(cinemas vazios e ingressos promocionais,
casais que não namoram,
movimento sem vontade,
a rotina que nem se sabe por quê,
quase nenhum acontecimento)

Segunda-feira é outono:
fazendo-me desfolhado.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O riso do Marido

O Marido já foi moleque que planejou micaretas, raves e afins; mas hoje ostenta uma aliança de ouro dezoito, comprada em bom preço. Nos nomes gravados, o Marido se recorda de tudo: da festa, da escolha dos padrinhos, do buffet, do vídeo de casamento...

A aliança é o signo de uma nova era. Para trás, fica um sujeito errante, de noites bêbadas e exageros com mulheres, que não cria em nada que se parecesse amor, até que chegasse Ela.

Ela, aquela, diferente de todas -ou igual às outras, em tempo diverso- a noiva é acessório de uma tragédia épica, que culmina no altar.

Hoje o Marido ri de si, ri dos outros, imagina a festa infantil com cachorro-quente, e autoriza-se, vem em quando, um reencontro com cerveja e amigos.

O Marido está transformado, sua marca é esse riso anasalado, de auto-escárnio. 

Quando ri, mesmo que não portasse aliança, todos saberiam tratar-se de um Marido.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Tempos

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Um dia, achamos que os joelhos nunca iriam doer; que o porre não acarretaria ressaca; que os cabelos não cairiam nem ficariam brancos; e que as paixões não passariam.

O futuro era um projeto distante, de fundamentos até então remotos: como você imaginava seu próprio futuro?

Depois de tantas voltas, desencontros e sacrifícios, estamos um tanto cansados.

Então, buscamos estabilização:
- um emprego estável;
- um amor que não cause palpitações e que, depois de um dia, encontremos no mesmo lugar;
- uma roteiro de viagem, para conhecer todos os pontos turísticos de um lugar;
- amizades que comemorem 10 anos de formatura, despedidas de solteiros;
- um financiamento imobiliário a juros baixos;
- uma banheira de hidromassagem num apartamento maior;
- fazemos uma lista extensa de realizações para o ano novo.

Além disso, contamos com a pretensão tola da sucessão. 

Do alto da (in)consciência da finitude, pensamos em filhos, na possibilidade de legar-lhes pensamentos e convicções; educar como se gostaria de ter sido educado, em colégios trilíngues. O filho há de ser nossa vitória em tempo recorde, sem desperdícios das tentativas frustradas.

Amadurecer parece isso: quanto mais se é, mais vamos deixando de ser - alguma outra coisa, mais ou menos inacabada, mais ou menos amorfa - até nos tornarmos rijos projetos de nós mesmos.

O sonho é uma ideia que se pensa certa para si. E quando finalmente chega e vestimos, como se fosse roupa de vitrine: falta algum caimento, e o encanto vai embora.

Por isso, o fim dos tempos é a incerteza, apavorante incerteza: causa maior de inquietude, arrebata qualquer propriedade humana. Está sempre à espreita e num repente sopra qualquer solidez como se fosse areia.

Resta-nos, então, deliciosamente: fazer castelos à beira do mar enquanto a maré é baixa.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Sueli

Sueli conseguiu uma oportunidade de trabalho por indicação de uma colega de faculdade. Sua rotina incluiu ônibus, trem, estação Central do Brasil... até que possa adormecer sob o ventilador de teto e a brisa dos carros, que atravessa a janela de seu apartamento em Cordovil. Vive com seus pais, bravos comerciantes do subúrbio e muito religiosos. Embora careça de atrativos físicos, sempre foi bem advertida sobre os riscos de deixar de ser moça. Essa educação definiu sua personalidade: é jovem de aparência avançada, arqueada, pensamento ansioso, fala afoita e olhar muito, mas muito assustado. Como se fosse ré confessa por erros ainda não processados. Seus óculos, inclusive, têm uma rachadura de ponta a ponta, por todo diâmetro da lente, dando-lhe uma visão parcial da realidade, e causando perplexidade em quem tenta encará-la. Aliás, certa feita foi trabalhar de lentes azuladas, o que despertou indagação de sua chefe. Sueli, acuada, imediatamente revelou que seu olhos eram castanhos; dali em diante, nunca mais tiveram outra cor. 

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Indescritível

Não tenho palavras para dizer
o que 
não 


...
sinto.

Meu silêncio inflado, inefável...
está cheio de ti:
é com tuas tintas pálidas que pinto minhas paredes.

Tudo é tão branco feito sorriso
que quase me rio
do riso que me olha.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Lobossolitariamente

Solidão do princípio e fim: 
é o uivo das minhas certezas
nesse espaço de tempo
enquanto canto
um samba.

Sou um lobo debaixo da lua,
solto na rua,
solitariamente,
sem matilha, sem martírio:
Lobossoritariamente!


Lobo na Lapa, por Rodolpho Saraiva

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Sobre o irrealizável

Muitos amores são deliciosas promessas 
irrealizaveis...

Nós dois pisamos tortos 
caminhos de desencontro,
como se amássemos de longe,
e a proximidade nos fosse o fim.

Teus olhos são tiros à queima-roupa:
queimam 
e me tiram 
a roupa.

Quando te olho,
esqueço das juras,
nem atravesso a rua:

É do outro lado que te seguirei amando.