(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

reciprocidades

cada mesma esquina traz alguma novidade
os olhos nunca serão os mesmos
as cicatrizes no peito ora são literalidades

mudou-se a disposição ao sonho
-menores expectativas-
dissuadidas pelas circunstâncias

o dia passou em um ano inteiro
como a vida à eternidade parece sono
o tempo não é presente nem indulgente:
credita passado e debita futuro

sou do tamanho do que me vejo
e das paisagem que me sonho
minha viagem é rumo do pensamento
sou ruas e caminhos por que me passo



segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

o erro certo ou a certeza errada?

a dose precisa de sonho
é medida inexata à realidade
as noites brancas
amanhecem um dia gris

colóquio madrigal

todo sentimento nasce premeditado
-jamais é invenção sobre o já consagrado

o frio de tudo experimentar
e apesar de tudo, só:
a solidão enorme, que trazemos em si

(a ser vencida
e ser forte como exige a vida)

soledade, um só remédio, a única vacina:
nossa sintonia fina
de palavras melífluas
sem qualquer engenharia

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

sob a própria direção

essas folgas em dias convencionais
caminhando o contrafluxo de bermuda

pela Senhor dos Passos
ao paço
passo
como senhor de cada passo

-anunciam almoço sem balança 
sem sobrepeso ou enganos:
tal o leve que me leva

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

a felicidade, des_esperadamente

desespera, pois, quanto menos se espera
menos se falta
mais se aprende o querer:

-esperar um pouco menos, amar um pouco mais

pois a esperança é um desejo tonto
sem saber, poder ou gozar

lute contra a espera
faça-lhe um luto
pois o tempo é presente
e a sabedoria, um horizonte da vida simplesmente como é

o lobo que se estrepe

o homem é lobo do homem
mas
entre o lobo e o carneiro 
não há nada 
que se faça ranger os dentes

o escapismo não é teatro mágico
o estrabismo não traz olhar diferente
o riso não se faz à cicatriz no rosto do palhaço

a verdadeira tristeza é melhor que a falsa alegria

o animal extraviado não se mente
o lobo é homem do lobo
desesperado à própria espécie

a exaustão de parâmetros habituais,
a desestabilização amplificando o horizonte de perguntas e respostas,
a dor extirpando o patamar de consciência:

quiçá a natureza trame a redenção
ao custo dessas luas uivantes

(e lágrimas ridentes sejam quintessência da arte)

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

carta a um velho poeta

as coisas estão longe do tangível
nem tudo o que acontece é dizível
olhar resposta afora é risível

a solidão é grande 
e o que valeria sem grandeza?
senão amar a própria incerteza

(a arte é de uma solidão infinita)

no cenário mais hostil
só: o abrigo certo e amparo sutil
ao denso mar do extravio
porto a todo navio

-solidão somos 
nós
aqui, nesta transição 
onde não se pode ficar

enamorados sempre da hora quase tão derradeira
a calar a noite e pedir a saideira

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

memento mori, memento vivere

nada mais difícil que savoir-vivre

o que significa este intervalo?
breve
ou longo 
(se souberes utilizá-lo)

é tão necessário perder quanto morrer
ninguém perde grande naquilo que escorre gota a gota
de que senão de fragmentos de ti próprio queres desfazer para tornar-te livre?
temer a perda já significa não haver contigo

a causa da tua tristeza já foi tua alegria
então sejas alegre pelo enquanto teve, não triste pelo findo
perde sem dor 
(a ostentação da dor mais exige que o próprio penar)
sabes que também perderás, um dia, tua vida inteira

o mundo é alteração; viver, sucessão
todos os dias, todas as horas te modificam
nenhuma alvorada te encontra onde o sol te pôs

todas as coisas são miúdas, inconstantes, destinadas ao desaparecimento
o ontem não passa da lembrança do hoje, de que o amanhã é um sonho

ainda assim, o passado te pertence e segue sagrado - nada mais em lugar tão seguro

a inteligência, também, livre das paixões 
é tua cidadela ao império dos acontecimentos
por ela reivindica teu direito sobre ti
governas tua vista e representações
negas o mal, fazes tua medida de harmonia
e te tornas teu maior refúgio, retiro e alento

à parte os teus encargos, confia na providência:
o que é vantajoso ao universo jamais compromete a parte

assim, vive cada dia como se fosse uma vida inteira

terça-feira, 2 de novembro de 2021

in-digo

o ponto de fuga 
(onde umbigo se encontra)
é justamente onde há
encontro

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

tempo real

conforme mais vazia a casa, mais os objetos perdiam a serventia e movimento usual. a xícara, a colher no escorredor, o relógio de ponteiro parado, a toalha a secar em total desatenção: não lhes havia tempo real. lado outro, pareciam maiores os espaços e o ar flutuava leve dentre os objetos - então meros figurantes da cena. o silêncio trazia música e dança. a quase inutilidade das coisas fazia sobressair o sujeito, observador disso tudo, pelo instante em que deixava o negócio e contemplava o ócio.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

prana

o enluto debate a dor
por amor 
à vida
pois tudo é começo 
a partir da finda

à lei do necessário
por coincidência ou providência 
nega o ócio
e o corpo desalma

o vazio que fica
é espaço novo à lida
a desvalida saudade
o amanhã valida 

toma a tua morte como
maior lição devida
e verás o propósito do teu sol
do nascente ao arrebol

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

loja 99

o velho restaurador da galeria Copacabana
posta o "volto já"
como se o átimo de ausência 
fizesse contraste à antiguidade da mobília

nessas idas e vindas
a eternidade toma o assento centenário
e, serenamente, observa

domingo, 8 de agosto de 2021

consoada dominical

a (des)ordem natural das coisas
inalterada à ausência 
por quem passou
recolocando tudo
em seu (in)devido lugar 

quarta-feira, 21 de julho de 2021

ser mugente

assento
politicamente incorreto
sobre o couro cru
côro curtido
d'um semovente

a mobília muge
como fazenda houvesse
neste departamento

lost in love

a incansável reticência

ressentida, reti-sente

dispensa ponto com vírgula

é inimiga do fim


earbuds

o que me passa?
o que se passa?
que te pasa?

ouço o mundo mudo a perguntar

terça-feira, 20 de julho de 2021

moradores subsquentes

O edifício datava dos anos 50, quando Copacabana era outra praia, de bossa nova em piano bar e alguns boleros nas janelas. O apartamento sofrera algumas modificações estruturais, especialmente pelo mais recente morador - adepto do conceito aberto. Anteriormente, o imóvel abrigou uma longeva proprietária - possivelmente desde a construção. Tratava-se de dona Florinda, sobre a qual não se sabe por contato direto ou estórias, mas por esforço imaginativo a partir de vestígios encontrados. Florinda era funcionária pública, como denunciam as ofertas espistolares abundantes de advogados jurando causas ganhas sobre verbas atrasadas. Era solteirona, posto que ao seu - incomum - inventário foram chamados sobrinhos e irmãos, sem prole nem consorte. Era também adepta do dinheiro em espécie, longe dos bancos: dispunha de um cofre menor, escondido atrás do criado mudo; e outro maior, reforçado por voltas e senhas, adentro do armário. Com suas economias, investiu no luxo do banheiro inspirado nos hotéis veranistas de Araxá: mármores íntegros cor de rosa no chão e na evidente banheira. Apostou na porta ornamentada com rosa cruz bem talhada e, com o passar dos anos, agravou o hábito de chaves, trincos e fechaduras, como se a fragilidade física aumentasse na mesma velocidade da violência do alredor do bairro. No canto da sala de TV, fantasiou com incontáveis novelas, das seis às nove e, tantas vezes, esticava a um filme policial de madrugada, a pensar nas vississitudes dos feitos e não feitos da vida e nas chateações da repartição. A vida lhe seguiu um curso cotidiano, pão com manteiga, da lida, do bom dia no elevador aos vizinhos, repetindo-se isso tudo, ordinariamente, até que bom tempo se passasse, sem perceber: de jovem independente e de bojudo ordenado à senhora celibatária ansiando - em júbilo - à jubilação. Quando o tal sonhado dia chegou, foi-se a labuta e veio a profusão do passado. Dali em diante, a rotina -sem deixar de ser repetitiva - tornou-se apenas mais arrastada (como seus passos), até que se aproximasse o minuto implacável. Sob o peso de lembranças natimortas, Florinda partiu, de súbito, caída no chão do banheiro, sendo as autoridades e seus colaterais comunicados após dois dias de silêncios e desconfianças dos porteiros. A vida - embora não lhe tenha sido materialmente ingrata - foi, por outro lado, bastante comedida em aventuras, extravagâncias e surpresas. Florinda seguiu o curso estável e previsível, do primeiro ao último dia naquele canto, que deixava guarnecido com dois vestidos de baile e muitos outros domésticos; alguns contos nos cofres; uma dispensa à metade; e tantos sonhos irrealizáveis. 

quarta-feira, 23 de junho de 2021

aninha-mento

mãe é aninhamento

cuja falta se remedia com música doce, quadro na parede e sala de estar
sempre acepipes à disposição
tudo bem posto

esta casa faço materna
para que embale ao começo e ao fim de dia
seja ninho ante as vicissitudes deste mundo vão

sexta-feira, 18 de junho de 2021

dieta balanceada

minha avó já dizia:
a oração é o pão que alimenta a alma

e depois de tudo, também digo:
a ilusão é o suplemento nutricional à realidade

terça-feira, 8 de junho de 2021

mude-se

o caminhão de mudança à esquina

o mood é modo
moda toda
à espera
daquela muda hora

tempus fugit actum

Quando perdemos alguém importante, todas as lembranças ficam niveladas, sem hierarquia cronológica. Vivências de dois meses, três anos, duas décadas pousam no mesmo plano, sem desvanecimento pela distância ou importância pela proximidade. Todo retalho compõe a tessitura; cada pedaço encontra seu perfeito encaixe. A cronologia é uma grande bobagem: diálogos de quinze anos atrás são mais pertinentes que os entraves deste janeiro. O tempo é uma maneira narrativa, uma sucessão fática que se pretende mais didática. Só. Quando quando ela termina, impõe-se outra leitura, de épocas mescladas, de sentidos maiores que a rotina de circunstâncias. 

terça-feira, 25 de maio de 2021

conselho

leve o leve
não espere o dia
que não chega

sem nunca ou sempre:
não há noite que não amanheça

toda hora é hora
amanhã ou outrora
hoje e agora


terça-feira, 18 de maio de 2021

souvernir

[as coisas tangíveis tornam-se inservíveis]

pobre de quem não soube atento
nem lembrou a tempo 
o que havia a lembrar

pobre de quem urgiu o físico
e sem olhar metafísico
nada alcançar

não se perde o perdido
não se esquece o ignoto
o que jamais foi, agora, nunca será
 
a lembrança, caríssimo, não tem muro nem dono
não ornamenta a sala de estar

cabe só 
num coração sem fronteira

sexta-feira, 7 de maio de 2021

viver é maior que sonhar

dentro dos empoeirados clássicos
da velha estante materna
muito além da literatura universal

as cartas que meu pai lhe escrevia
bilhetes de aniversário
cartões natalinos
recadinhos avulsos
orações de santinhos
velhos postais
saudações de dias das mães

Homero, Eça de Queiroz, Moris West, Stendhal, Tchekhov, Oscar Wilde
até nas ilusões perdidas de Balzac
em Quixote, Proust, Camões e Dante

os maiores ditos eram enxertos perdidos
memórias avulsas e particularíssimas
lançadas sem destino
desimportando autor ou título

varri aquelas obras vermelhas 
à procura de algum ponto ou contraponto que cosesse a minha costura
e me dissesse à abotoadura:

a vida é capa dura
experiência curta, sem páginas
de pesares e alentos
que não cabem no livro

sexta-feira, 2 de abril de 2021

saturação

no limite do suspiro
quase não suspirava 
o derradeiro fôlego ao canto espreitava

havia a vela da fé assoprada
entregando o que não me havia
arriscando tudo ou nada
dei-lhe todo ar que me faltava
até que ganhei novo tempo nesta estada

os quarenta foram cobrados ao custo mais alto, repactuando o primordial:

a vida não seguiria à toa ou por acaso, deveria ser loucamente quista
e suplicada
em cada imponderável segundo

sexta-feira, 19 de março de 2021

Nos tempos da buzina

"Era tudo diferente", consignava o uberista, inconformado com a criminalização do flerte maroto do trânsito carioca. "Quando avistava aquela beldade já diminuía a marcha aguardando o sinal fechar", destacava. Na sua descrição, a buzina era a variante motorizada do assovio. Ressaltou que sua buzinadinha era bem leve, uma batidinha de punho direito cerrado, bem discreta, para não assustar. Ainda assim, a revolução feminina foi gradativamente repelindo a irreverência do condutor: pouco a pouco aumentou a incidência de respostas com dedos médios em riste. Invocando romance, cortejo e gracejo, o uberista asseverava que sua avó conheceu sua avô pelo repique de um clássico Ford Bigode, de modo que, sem aquele - hoje malfadado - som, sua estirpe sequer existiria. Relatou ainda, com riqueza de detalhes, abordagens realizadas em diferentes épocas, sempre com sutileza e respeito até que, hoje, fosse contido pelo medo, determinado pela experiência de um colega de praça, cujo casamento e emprego em firma foram destruídos após uma buzinadinha marota à vizinha da Vila da Penha. "Vou te dizer, não existe infração mais grave no Código de Trânsito do que essa, antes perdesse a CNH".

quinta-feira, 18 de março de 2021

Socorristas

Eram anjos do asfalto, atuando em trinca: o chofer boa praça, o Dr. de farda azul e o auxiliar repleto de histórias. No limite das madrugadas, tantas vidas adormecidas e outras prestes a não mais acordar. Para essas, antes do último suspiro - e até depois dele - estavam a postos, acionados desde uma unidade em Vila Isabel. Não fosse a sirene estrondosa, seriam reféns de engarrafamentos no Rebouças e Santa Bárbara e, por um átimo, falhariam na missão. "A vida tem pressa" dizia o Sancho Pança daquela UTI móvel, imediatamente emendado pela assertividade filosófica do Dr. "a vida é ávida". Dentre tantos socorros memoráveis, destacavam a eficiência do repertório de substâncias reavivantes e das técnicas de ressurreição: "já salvei um bacuri com massagem cardíaca desenganado pelos médicos", gabava-se Sancho. Acima da expertise e frieza para o salvamento - talento que só lhes escaparia se o paciente fosse um ente querido - ressaltavam a sinergia daquele trio de profissionais, cuja boa combinação fazia o tempo em missão fluir mais leve. E assim seguiam, serenamente, a desafiar o findo respiro, adiar a derradeira batida. Pareciam gozar de autorização divina para transitar no limiar da existência.

é terna a idade

oito é infinito, repertindo-se
(meu nome em oito letras)

uma ponta partida também pavio curto de porvir

as semanas começam aos domingos 
à meia noite, ao meio dia... os mesmos são ponteiros

ressinto tudo findo
o novo, absinto
a tal ponto já não sei
onde começo e termino 

terça-feira, 9 de março de 2021

adágio sustenido

será todo tempo passagem?
à meia noite, pós estiagem
adentra à janela sábia aragem
a dizer infinita a mais pura imagem
sem ida ou vinda, sempre viagem
e se ousamos entender toda essa engrenagem
a lágrima torna desfeita qualquer maquilagem

domingo, 7 de março de 2021

Sr. Benson

Benson era zelador de edifícios desde que completou o ensino médio, no começo dos anos 90. Residia na longínqua e bucólica Barra de Guaratiba, bairro de praias selvagens, adestrado pelo jugo da milícia. Benson era um sujeito de fino trato social, mulato alto, sorridente, dotado de formalismo e salamaleques dos clássicos mordomos e muito reverente aos mais idosos, orgulhando-se desta habilidade, que segundo ele era o mais valioso legado recebido da educação dos falecidos pais. Casado há mais de década, declinou, por convicção, da prole - acreditava já haver gente suficiente neste planeta. Em compensação, adotou uma trinca de vira-latas de pequeno porte, os quais tratava como filhos. No canto de seu sorriso acolhedor, Benson trazia uma tristeza ligeiramente aflita, a qual se revelava vagarosamente a moradores e passantes do edifício. Cobrindo essas deixas, vez em quando - e com cada vez mais frequência - aparecia em um sustenido sobressaltado, inusitadamente eufórico, rompendo a tal cuidada etiqueta profissional. Nesses momentos, fazia manifestações de apreço afetuosas e ensaiava abraço aos moradores mais chegados à sua prosa, e com facilidade marejava os olhos. Passado esse súbito, ao final do expediente, deitava-se reclinado na poltrona de ofício, e dada prostração resultante, negava-se à troca de turno com seu colega vigia. Desconfiados de possível embriaguez - embora sem descartarem eventual moléstia neurológica - os conselheiros lhe apoiaram em exames de imagem, os quais nada diziam, a não ser confirmar a desconfortável imputação etílica. Tamanho apreço, e de modo a evitar uma consequente demissão por justa causa, a administração do prédio decidiu conceder-lhe um mês de férias. Passado período, retornou, com formalismo original, preservado com afinco por três semanas, até que, em um dia de expediente, apareceu com camisa de time inglês e mochila nas costas, e semblante emocionado. Seguia resignado à segunda oportunidade de rehab, com promessas de retorno breve: "vou ali me cuidar e já volto".

terça-feira, 2 de março de 2021

ocaso e a lógica

nego nega o não dizendo sim
neste vice verso
versa o vice
à espera que cais
enfim de tarde neste Rio de Janeiro
entre os dois irmãos e a pedra gávea 
donde arremete o poente

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Hermínia e Herculano

 Sr. Herculano e Dona Hermínia eram casados há mais de 40 anos. Nunca tiveram filhos. Conheceram-se em uma repartição pública do extinto estado da Guanabara. Ambos praticamente solteirões, pós idade núbil, aproximaram-se já maduros e formaram um consórcio familiar, à meia idade, sem ambição de prole ou rapapés. O tempo que lhes parecia ingrato e atrasado, foi-lhes uma dádiva: mais maduros, viveram o bom da parceria, viagens, vinhos, passeios à serra. Atravessaram épocas e tempestades em uma parceria sem arroubos, pura e simples, já sem o peso dos retardatários e das possibilidades perdidas. Nos primeiros anos e décadas, eram curiosamente invejados por casais mais consuetos, cujo peso das decisões de vida, peleias e filhos, já agouravam as juras do altar. Ao borde de tornarem-se octogenários, porém, Herculano padecia de reumatismo em suas pernas finas e compridas e Hermínia manifestava gradual esvaziamento de suas faculdades cognitivas. Afora do cenário doméstico, o mundo atravessava uma pandemia viral de inéditas proporções, e parecia desacolher os consortes. Sem filhos, netos, sobrinhos ou parentes que pudessem assisti-los, restava-lhes a vaga referência de uma irmão de Herculano, no interior de Pernambuco. Desassistidos mas autoindulgentes, Herculano e Hermínia ousavam-se nas ruas movimentadas de Copacabana, vestindo uma máscara às vezes abaixo do queixo, outras abaixo do nariz. Perceptivos da exiguidade e finitude iminente, tomados pelo mais tresloucado carpe diem, como crianças, negaram as premissas do "fique em casa", e puseram-se a sair mais e mais, sob qualquer pretexto. Mesmo percebendo a senilidade de Hermínia, Herculano punha-se a segui-la sem questionar, a tal ponto que tornaram-se frequentadores assíduos de botequins lotados do bairro. Bebiam até que beirasse o amanhã e como se amanhã não nos houvesse. Sem qualquer trato explícito, mas implicitamente comungando do inevitável, propuseram-se a uma eutanásia etílica - que os porteiros e o síndico inexitosamente tentavam dissuadir. Até que Herculano foi-se, internado, por supostos problemas de diabetes. Hermínia, sem o cúmplice e quase sem lucidez, restou sofrida, urrando angustiada na portaria e em circuladas pelo quarteirão: dizia-se traída pelo marido, fugido por um rabo de saia, depois de lhe aturar tantas décadas. Hermínia sofria, copiosamente - ainda que as reais razões já lhe escapassem ao domínio.

tramitação

a poesia nunca me bateu na porta

jamais mandou carta ou telegrama

foi só uma aventura torta

não mexi com ela pretensiosamente sendo poeta

não importava que titulação viesse

queria dizer apenas

como me convinha

e, nessa toada, não me vejo em saraus ou antologias

não presumo que eu ou meu dizer sejamos classificáveis

nos moldes da norma culta

na tradição da poesia brasileira

modernosa escrevendo desarranjadamente minusculosa

aos músculos

com figuras escatológicas

o que tenho a dizer não cabe no cesto ou em gôndola

é palavra desprecificada, sem apreço no mercado

talvez me valha - e mais alguém - n´algum fim poente

tardiamente, como arrebol de imagens

recapitulação

 Uma tarde à toa e um passeio no arquivo deste Blog - já tão démodé no formato - trazem vivências de épocas. Embora sempre fosse aqui espaço para rascunho e não arte final, para iter e não consumação, é interessante reolhar textos antigos, não com intenção de garimpo, mas com generosa percepção do momento da escrita. Que circunstâncias corriam ali, no ato da digitação, da escolha e falta de palavras? Que experiência arrebatava a escrita e que sentimentos eram dilatados ou forjados ao desenvolver as linhas? Alguns desses textos, hoje, melhorariam à reescrita; outros seriam mortos por ela, soterrados pela preocupação estilista. Em verdade, importa menos o que foi dito, não a forma de dizer. Há milhões de sinônimos e figuras de linguagem, para dizer com ênfase, disfarce ou estilo tanta coisa; mas o sentimento é uno, cru, desinteressado por bulas. O sentimento é só, puro, despretensioso, aceita papel de pão ou pólen. Exatamente por isso inexista hierarquia entre o poema publicado e aquele que restou esquecido por aqui. Aliás, os supostamente desimportantes são o que melhor sofrem ação do tempo, apuram-se e fermentam. Olhando pra eles, alcanço muito mais do que pretendiam dizer. Diga-se "sentido implícito" ou outro nome que se dê. Os poemas renegados tem um charme e carregam um vaticínio, como mensagem em garrafa lançada ao mar: depois de muitos anos, as estrofes desarranjadas, palavras inadequadas e cacofonias se orquestram.

as paredes me confessam

Quando criança, descobrira alguns segredos indescritíveis. Um deles, em especial, era ascultar uma casa vazia. Quando todos saíam, restava um zunido silencioso, em frequência baixa, às vezes disfarçado pelo ruído da geladeira, da tomada ou do stand by da TV. Com muita observação, era possível perceber a autonomia do zunido, cuja existência só era possível mediante ausência dos habitantes ou, pelo menos, a presença dolosamente desapercebida de algum deles. O tal zunido, uma vez notado, não se atinha aos ouvidos: elevava-se à experiência sensorial, a tentativa de comunicação velada, cuja origem e interlocutores eram indefinidos. Talvez falassem os livros, os quadros, as plantas, os vasos; talvez falasse a própria casa, seu organismo concreto, paredes, tubos e dutos. Parecia pouco importar o que se dizia; maior era atenção à possível oitiva - hoje lembrada e repetida, durante o sorver cuidadoso do café da tarde. Repetindo a observação quase esquecida, o ora homem pensou-se mais hábil que outrora garoto. Ledo engano: o fenômeno permanecia indecifravelmente o mesmo. O zunido zunia como se nada houvesse mudado.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

sobre_viver

sobre o viver
una a certeza
sobreviver

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

quarentão in quarentena

passou março, entrou abril, maio e junho
*sem São João
foi julho agosto setembro
*nem notei a primavera
aí outubro novembro
enfim dezembro
*não houve réveillon
passou janeiro fevereiro
*sem carnaval
e segue outro março

nessa esteira de tempo
andei o mesmo passo
e quarentei na quarentena

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

quarantena

Do alto do asilamento, ondas curtas e longas, em fina sintonia, lembravam músicas, filmes, pessoas, frases, árvores, passagens, amigos, amores e tardes

(a felicidade pede pouco)

Na divisa imponderável do amanhã, este presente é instância desconfortável entre a pressa sequente e o aportamento aleatório do reminiscente

(ora vive-se sem o baço
e morre-se sem abraço)

Enquanto o mundo seguiu velado
uma cidade subiu à revelia do concreto armado
e neste tempo desalmado 
nela hei de estar abrigado


domingo, 31 de janeiro de 2021

baile de máscaras

o arregalo do olho
à flagrante mirada
entreolhares resguardam sorrisos
a face entreaberta transgride espios:

os olhos veem o coração quente