(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

ex-ofício

do caos decorrente ou inconsequente
projeto bem pensado ou mero jogar de dados

cabe ao poeta inciente 
acolher o oculto 
que angustiadamente esconde
nossa centelha existencial,
nosso ouro

terça-feira, 25 de outubro de 2022

caminhão de mudanças

quando vejo o caminhão de mudanças
com letreiro enorme
parado à porta do meu prédio
me pergunto se não é ameça explícita
à ilusão de rotina tediosa

wabi-sabi

à sombra incerta
ao próprio desencontro
restando no lugar do qual já foi embora
um homem que dorme
vendo seu próprio filme

por ali
em dias molhados
o rio corta pedras como seta incontível
nada queda hirto
tudo corre abismo
mar incerto a desencontrar

o vasto só a si se basta
e o pensamento pasta 
nas incontáveis colinas
contando vaquinhas e plantações 
balanceando anos idos 
e poemas eternamente inacabados

sim, foi tudo de repente
o inda outrora premente
virou semente 

não:
tanto segue o mesmo
retorno sem consolo

e naquela água enlameada melhor espelha a imprópria imagem
-sem reflexo-
pois adentro de si 
correm 
todos aqueles rios turvos

soltanto parole

as palavras nada dizem
apenas orbitam
o indizível
- pretensiosas que são 

domingo, 16 de outubro de 2022

todas as tantas coisas

O perto e o longe são parte de mim. Este silêncio esquecido e o burburinho da cidade - igualmente me cabem. Encontro-me perdendo-me no mais remoto desvario. Estou na constelação e no brilho da estrela cansada que aqui me alcança.

Desde os miúdos acontecimentos, tudo conflui para este meu celebre momento: ser profundamente vencido por algo maior, fluir debatido até ganhar-me.

perto-longe

Mesmo aqui, no ponto esquecido do mapa, ermo e esmo, panta rei: a vida seguiu seu curso. O rio corre, ainda que o falsete de pedras lhe esconda as águas. 

"Dez anos é muito tempo", haveria de pensar.

Alguns foram, outros se foram. Mas há no espaço-tempo uma linha curta, que encurta a história em um nó: retorno terno. Uma curva que volta à mesma praça que não muda: o cachorro dorme e a criança corre sem compromisso com o futuro nacional. Todo dia é domingo.

O rio segue regendo tudo que ocorre: seja no que se arrasta e não permanece; seja no poluto batismo da cidade, que teima em ser esquecida, fazer-se esquecida, brincar com esquecimento, abrigando lugares que desafiam o coração: "Soledade 1, 2 e 3", ruas sem sem números, estradas de chão a lugar algum, pontos em que ônibus param sem pousar.

Sob este mesmo sol, pelos prismas de um diamante, o olho vê nativo, cativo, forasteiro e retirante.

Já voltaste, depois de muito tempo, ao mesmo lugar? Vence a sensação de visitar a si mesmo, recapitulando instantaneamente todos os pensamentos, angústias e prioridades da última vez, quando circulava-se a praça para aquietar-se. A aporia cambiou, mas aquela inquietação ainda merece ser acolhida. 

Aquele que revisita a cidade reencontra mais de si mesmo: não se sabe se aquelas águas turvas são fluviais ou suas. 

Tudo segue meio feio e enlameado, e, ao tempo mesmo, tão poético e vulnerável.

O findar dos ciclos, por mais doloroso que seja, sempre nos fortalece. Mas os ciclos findos também nos acolhem.

sábado, 1 de outubro de 2022

contravias

incomoda
o trânsito
com buzinas
sirenes

porém, o maior barulho é inaudito:
"tudo transitório em demasia"

tanto que o verbo
de transitação cansada
ora intransitivo e intransitável
caminha silente ao ascostado