(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

sábado, 29 de março de 2014

Sintonia fina

Uma sintonia fina os unia, como uma conversa de chat eletrônico.

Encontravam-se em devaneios longos, em um idioma de duas bocas, que sempre beirava um beijo.

Chegavam ao ultra-contato, transcendentes à métrica, aos perfumes, ao áspero.

Restavam-se por horas, até que se tornassem poucos, pequenos, quase-nada, ao longo dos prédios, do correr dos carros, da pressa dos andantes, dos movimentos estelares.

Ninguém ousava dizer "preciso ir", essa frase crudelíssima, cardiopática e dilacerante, e cuja dicção exige preparo do emissor e alheamento do receptor, um tipo de violência que não se coaduna com aquela película.

O tempo lhes passava ao largo, ignorado, pois aquela conexão não tinha hora marcada.

sábado, 22 de março de 2014

Canção da chuva



A chuva iniciou desorquestrada,
em um ritmo tão forte;
depois alentou-se cuidadosamente,
escorrendo pelo concreto
em leves batidas
sustenidos nas janelas

Depois da queda colossal,
da poeira baixa e calçadas lavadas
o que reina é a música
constante, entre pausas silenciosas:

-como se em cada parte houve uma nota.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Finito

Se todo dia fosse despedida,
o mundo inteiro à vida se daria
até a última gota,
até o último beijo.

Às vezes, tão seguros, ignoramos o finito:
esse grande valor de existir,
intensamente e livre.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Sobre a ilógica dos rumos

Os rumos são mais lógicos quando retos. 

Mas nem sempre a menor distância entre dois pontos é mais virtuosa.

Devo essa conclusão ao colega de curso de Inglês, um estudante de Física, que iniciou o ensino superior aos trinta e três anos, pois, a vida, até então, não havia lhe franqueado essa oportunidade. É natural de Teresópolis, meu conterrâneo, e também grande conhecedor do abismo soberbo entre as curvas da Serras dos Órgãos e a Guanabara. Apesar disso, também ousou sair do ninho, para estudar na UFRJ e residir em uma república.
 
Um dia, resolveu retomar o Inglês, mas bem longe da lógica: optou por um curso em Copacabana. 

Ao saber disso, indaguei o porquê da escolha, sem qualquer censura à opção tão desafiadora da mobilidade urbana. Ele quase constrangido me respondeu que queria sair um pouco da Ilha do Governador, e punha o skate na garupa da moto, para dar umas voltas pela orla após a aula, antes de retornar para sua república.

Sábia lição!

O planejamento cotidiano e o zelo paranoico com a "perda de tempo" nos fazem escravos de uma ordem automatizada, encarrilhados na "lógica do menos".

Romper esse imperativo e abraçar a "lógica do mais", da individualidade, do non sense, do que faz bem à alma, tornou-se uma tarefa cada vez mais complexa. Desconstruir a rotina, tão bem arquitetada, nos exige desapego.

Mas é certo que sem uma volta mais larga e ilógica, não haveria skate, calçadão, praia, encontros ocasionais e sobretudo, liberdade.