(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

as paredes me confessam

Quando criança, descobrira alguns segredos indescritíveis. Um deles, em especial, era ascultar uma casa vazia. Quando todos saíam, restava um zunido silencioso, em frequência baixa, às vezes disfarçado pelo ruído da geladeira, da tomada ou do stand by da TV. Com muita observação, era possível perceber a autonomia do zunido, cuja existência só era possível mediante ausência dos habitantes ou, pelo menos, a presença dolosamente desapercebida de algum deles. O tal zunido, uma vez notado, não se atinha aos ouvidos: elevava-se à experiência sensorial, a tentativa de comunicação velada, cuja origem e interlocutores eram indefinidos. Talvez falassem os livros, os quadros, as plantas, os vasos; talvez falasse a própria casa, seu organismo concreto, paredes, tubos e dutos. Parecia pouco importar o que se dizia; maior era atenção à possível oitiva - hoje lembrada e repetida, durante o sorver cuidadoso do café da tarde. Repetindo a observação quase esquecida, o ora homem pensou-se mais hábil que outrora garoto. Ledo engano: o fenômeno permanecia indecifravelmente o mesmo. O zunido zunia como se nada houvesse mudado.

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