(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Dona Carlinda

Dona Carlinda mandou subir o piano à serra com expectativas de um eldorado em paz. A vida no Andaraí trazia duras marcas da realidade: assalto à mão armada por homens encapuzados, uma bala encapsulada na bacia, vazamentos intermináveis do apartamento de cima, tiroteios das favelas vizinhas e crivos de fuzil na fachada do prédio. Carlinda, professora de música aposentada, cria na redenção de uma vida nova, no compacto apartamento serrano adquirido em planta. O sonho foi investido em parcelas mensais, tais aquelas de se quitar a hipoteca. Depois de muitos celeumas do condomínio recém-saído, Carlinda pôs-se a saborear aquele surpreendente decurso melífluo de horas - ritmo tão alheio à truculêcia carioca e da baixada fluminense. As cordilheiras atlânticas pareciam murar o sossego em face da fervorosa Guanabara, viabilizando exercícios mnemônicos, que rendiam reportes a um - até então inimaginado - livro de memórias, todas cenografadas em um Rio de marcas extintas e anúncios de rádio. Pelas arborizada varanda, ao fim da tarde, já ecoavam ligeiras notas de piano sob acústica do céu baixo, como se fosse um órgão naquela serra de órgãos. O sono, agora, era espontâneo, após a novela das nove, quase esquecido do habitual coquetel de uísque com zolpidem.

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