(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O Natal de Nazareth

O Natal do apartamento 204 estava longe de ser daqueles de comercial. Os filhos viajaram com amigos (sempre faziam isso desde que o pai morreu). Restava hoje e sempre Nazareth, já senhora, e sua sexagenária ajudante, Cremilda. Os preparativos não se importavam com as ausências: peru no forno, panela de arroz, farofa, tudo no capricho. A cada retoque nos pratos, Nazareth sorvia um vinho bem tinto e doce, que a impulsionava à catarse. Cremilda, atenta confidente, cortava a cebola da farofa. Surgiam então lembranças dos últimos natais bem frequentados, de casa cheia, bicicleta embrulhada pra presente, crianças correndo. Nazareth discorria com alguma lamúria dos problemas da vida, questionava a criação dos filhos, mas não sabia em que ponto exato as reuniões familiares desataram. Talvez fosse Dona Dorotéia, sua mãe, que mantinha a família unida, pois as crianças adoravam aquela avó.  Mais cebola, mexe a farofa, uma viradinha no peru, outro gole. Nazareth se inebriava de vinho e lembranças, sua voz ia amolecendo. Cremilda olhava reflexiva à cebola corando na panela.
Toca a campainha.
É Dona Pequena, a solitária do 305, que num esbarrão de elevador, acabou sendo convidada àquela ceia. Trazia um pudim de pão (receita centenária) e uma garrafa de cidra. Depois de muitos anos, haveria visita na casa. Mas não apenas por isso, Nazareth parecia mais leve. Havia sobre a mesa um arranjo de flores e frutas em conserva. Parecia que as ausências, de repente, pudessem se fazer presentes. Por mais remota esperança, o coração de Nazareth estava leve neste dia.

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