(qualquer verossimilhança é mera descoincidência)

segunda-feira, 13 de junho de 2022

vende-se

A luz esquecida acesa, na última visita do corretor, revelava paredes adormecidas do apartamento que já foi casa. As velhas cortinas brancas de tecido fino, a porta de madeira trabalhada, o adesivo de marca no vidro da janela, a pintura em tom goiaba desbotado, o armário embutido branco amarelado, a decrépita cúpula no teto eram vestígios de remotos habitantes. Aqueles cem metros quadrados já abrigaram o começo de casal e o berço do bebê; alguns natais e presentes na árvore; brigas da esposa e ameaças de separação; filhos crescidos ao mundo em intercâmbio; pais solitários e síndrome do ninho vazio; pais separados à velha mãe solitária, agravando seus grisalhos, ao brilho da telenovela. Passou-se ali uma vida inteira, do sol de cada manhã à aragem da noite, tantos personagens, amores, brigas, sonhos. Tudo até então adormecido ao mundo, desde a última partida, até que o corretor esquecesse a luz acesa na última visita e restaurasse um universo perdido no tempo. O cliente, em seu olhar prático, havia repelido de plano a negociação, face a necessária reforma do banheiro azulejado, restauro de mármores e sinteco desfeito, e demãos mais claras. Ao fracasso das argumentações do anunciante, velado à luz amarela - esquecida acessa - seguiriam reinantes os objetos inanimados daquele cenário repleto de registros de afetos e desafetos, com evidências tão desimportantes aos possíveis compradores. O ex-lar, então imóvel, quadrissima, era precificado ao melhor custo de herdeiros cansados, após meses de inexitosos anúncios, os quais relegavam aquelas riquezas banais e secretas de cotidianos perdidos ao curioso olhar vizinho.

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